passarola quer voar: Uma aventura fresca numa noite quente de verão

sexta-feira, agosto 4

Uma aventura fresca numa noite quente de verão

Acordei a meio da noite com o que me pareceu ser um tremor de terra na cozinha.. levantei-me e fui ver o que era. Numa qualquer troca de identidades de electrodomésticos o meu frigorífico estava a entrar numa fase de centrifugação própria das máquinas de lavar roupa. Ainda não é altura para pedires reforma – disse-lhe eu enquanto lhe abria a porta para tentar perceber o que se passava. Cá fora estava um calor terrível por isso, não é totalmente de estranhar que não tenha oferecido resistência àquela força fresca que me puxou para o seu interior. Num segundo senti, primeiro o peito, depois a cabeça e braços e por último as pernas, a serem puxadas e reduzidas a 7% do seu tamanho normal.

Tinha poucos centímetros de altura e estava na prateleira de cima do meu frigorífico.

Rodeada por pacotes de iogurte e algumas tupperwares com os restos das refeições do dia anterior, fiquei por ali até perceber que vinha música da prateleira debaixo. Estranho? Curiosa, comecei logo a pensar na melhor forma de descer. Ainda estava a uma altura grande para o meu tamanho e uma queda dali de cima poderia ser violenta. Deitei-me de barriga para baixo e, por brincadeira, deixei os braços caírem naquela direcção..qual não foi o meu espanto ao vê-los esticarem e esticarem e esticarem até às minhas mãos sentirem que podiam agarrar bem agarrada aquela prateleira distante.
Com um impulso..upa..já lá estava, bem no meio de uma plateia de legumes que, satisfeitos, assistiam à actuação de duas beringelas acompanhadas por uma courgete e alguns cogumelos. Cantavam .."when you’re smiling...the whole world smiles with you...pana nana nã .." uauuu...conhecia bem o tema e comecei logo a dar à perna. De repente, o palco foi invadido por uma big band de ovos à altura das que se faziam ouvir nos anos 20/30 e eu não resisti a dar uns saltinhos de dança que me fizeram levitar como se por magia a gravidade tivesse perdido a força. Ah!! Que fixe! Dei umas cambalhotas e umas piruetas no ar e fui aterrar bem na prateleira do fundo do frigorífico. Levei algum tempo a perder o sorriso e a perceber que aí o ambiente era completamente diferente. Um tomate tinha morrido e uma alface, algumas cenouras e muitos amigos tomates choravam algumas lágrimas. Olharam para mim como se me culpassem da inutilidade daquela morte e eu fiquei paralisada, com um mau pressentimento. Começaram a avançar na minha direcção com cara de legumes poucos amigos e o meu coração disparou de medo...

Olhei para um lado e para o outro sem saber o que fazer..aiii..os assassinos aproximavam-se cada vez mais, preparados para me refogarem bem picadinha quando, num acto de desespero, experimentei esticar os braços. Boa!!.. Ainda funciona..vi os meus braços crescerem até à prateleira de cima e ..ala que se faz tarde... Um andar acima, ainda evitei respirar até ter a certeza de que não me seguiam. Fuuuuu!!! Respirei de alivio e, ainda a medo, olhei em volta. Mas o meu corpo continuava inquieto e percebi que a tensão me vinha agora dos olhos. Senti-os a quererem saltar e ainda demorei algum tempo a perceber o que se passava.. aaah.. o prato dos queijos apanhou-me desprevenida e foi mais forte do que eu. Num impulso, soltaram-se-me da face, escorregaram-me pelos braços e rodaram exactamente até ao centro do prato. Agora era a minha boca que também queria ir mas eu não podia deixar. Cega.. farejei o caminho até aos queijos, onde recuperei os olhos e deleitei a boca. Ummmm.. de barriga cheia, consegui acalmar-me. Decidi que era hora de voltar à vida mas..como? A porta do frigorífico estava fechada e a minha força de poucos centímetros não poderia ser suficiente para a abrir. Apercebi-me pela primeira vez da ratoeira onde tinha caído. E agora?..o que é que eu vou fazer à vida?...e se ninguém me encontrar? Senti uma angústia a subir, a subir e estava com um grito prestes a soltar-se quando a luz do frigorifico se acendeu. Alguém tinha aberto a porta e uma mão gigante caminhava já em direcção à taça das cerejas... Era agora ou nunca..uppaa.. num salto gigantesco consegui misturar-me na taça mesmo a tempo de ser agarrada pela mão..mas.. não!!!..não!!!..espera..NÃOFAÇASISSO....

Fui engolida..por mim!

Menos mal..já dentro do meu corpo, resgatei o tomate da prateleira de baixo, deixei-o a descansar em paz no caixote do lixo e voltei à cama sem perder o sorriso.