passarola quer voar: 1. Como é que tudo começou?

sábado, dezembro 29

1. Como é que tudo começou?

- Hummm!! Estou a acordar. Afinal foi tudo um sonho. Agora vou abrir devagarinho os olhos, descobrir que estou na minha cama e tudo não passou de um pesadelo…

Mas antes de abrir os olhos, a Carlota já conseguia sentir a humidade e escuridão que a rodeava.

- Não!! Estou mesmo enfiada num buraco, sem saber como vou sair daqui... – sente o corpo dorido da queda e, assustada, esconde a cabeça nos braços. Num movimento rápido da cabeça, afasta o choro que começa a trepar-lhe pela garganta.

- Talvez me encontrem...tenho a certeza que estão todos à minha procura. Quem será que me vai encontrar primeiro? O Jorge e a Isabel? O Gaudi? O Ricardo? O Tomás e a Vera? O Mário e o Henrique? – quase sorri a pensar nos seus amigos - E se for o Simão ou o homem sem rosto? – O choro novamente – Não!! Calma, Carlota, pensa. Há sempre uma solução.

- Posso sempre sair por onde entrei... Mas… por onde é que eu entrei? Como é que isto tudo começou? Quando a minha mãe começou a pintar o quadro? No início das férias? Ou quando nasci?

Com os olhos mais habituados ao escuro, Carlota começa a explorar o buraco. Vê pequenas entradas de luz muito acima da sua cabeça, percebe que foi por aí que desceu e pensa que foi uma sorte não ter partido nada. Já de pé, dá uns passos em volta, analisando as escuras paredes de terra. Encontra pequenas pedras que começa a juntar – Recordar faz-me bem, afasta os pensamentos negativos – pensa enquanto continua a coleccionar pedras e paus de diferentes tamanhos, sorri ao lembrar-se das suas diabruras de pequena - Acho que já nasci talhada para acontecimentos estranhos...

- Quando é que eu comecei a meter o nariz onde não era chamada? Se não me engano foi logo que comecei a ler. Não podia aprender pelos livros da escola como os meus colegas, tinha que ser diferente. Foi por isso que escolhi os livros com aspecto mais velho e misterioso que encontrei no sótão dos meus avós. Assim, aprendi a ler com as maiores histórias policiais já escritas, no meio de muito pó e de pequenos bichinhos transparentes que me faziam comichão nas mãos.

Fiquei logo fã de todas as grandes personagens desses livros, fossem elas detectives, advogados, polícias ou simples velhinhas coscuvilheiras. Depois, comecei a imaginar que era a mais pequena detective do mundo e a resolver os pequenos mistérios da minha vida: Onde se escondeu a concha da sopa; quem comeu a última fatia de bolo; onde está a t-shirt velha do papá; quem escreveu uma palavra feia no quadro da escola - enquanto falava, com uma das pedras, ia desenhando um boneco na parede de barro. – E sabes quem se divertia muito com as minhas investigações? – pergunta ao boneco. – Os meus pais...

Foi de quem herdei esta mania de ser diferente – com a mesma pedra, escreve no barro o nome do pai. – O Jorge é escritor e viver com ele às vezes não é nada fácil. – Ri-se ao lembrar-se da vez em que entrou no escritório e o viu a discutir alto, sozinho, gesticulando muito. – Sabes que sempre que acaba de escrever imagina o que muitos dos grandes escritores pensariam da sua obra... e chega mesmo a entrar em grandes discussões com alguns deles – sente um arrepio na espinha. – Como o escritório dele é também biblioteca, imagino que vivem lá todos os fantasmas dos escritores dos livros que lá estão e são eles que deixam o meu pai tão alterado. Depois, fora do escritório é muito divertido e imaginativo. Fartamo-nos de brincar os dois.

Se estivesse a trabalhar neste momento, bem que eu podia estar desaparecida meses que era capaz de nem dar por isso... ao contrário da minha mãe – desenha o nome Isabel.

A minha pintora famosa adora ter-me ao pé dela sempre, mesmo quando está a trabalhar e eu, adoro vê-la de pincéis em punho, em duelo com a tela. Sempre que começa um quadro novo ela desenha, pinta, desenha, pinta, pinta e ainda pinta outra vez até que o quadro chegue exactamente onde ela quer que chegue.

Fica tão bem disposta a pintar que se farta de rir, dançar e cantar sozinha. Agora vou contar-te um segredo – aproxima-se do seu desenho e diz baixinho - Ela pede-me sempre que dê duas pinceladas pequeninas em qualquer zona da tela, em todos os seus quadros mas isso, ninguém pode saber... é para ver se alguém descobre.

Começa a desenhar uma casa. – A nossa casa também está sempre cheia de gente diferente. Por lá aparecem escritores, pintores, actores, músicos, ilusionistas e muitos outros artistas que chegam para almoçar, lanchar ou jantar e que sempre acabam por ficar muito mais tempo – Desenha muitas carinhas sorridentes dentro de casa.

- Uma das culpadas disso, é a Isaura, a nossa milagreira que tem a capacidade de multiplicar os seus deliciosos cozinhados de forma a que não falte nada. Às vezes imagino que tem uma varinha de condão que abana e... zás! No fim, a cozinha aparece impecavelmente limpa e arrumada como se nada se tivesse passado ali.

Mas a Isaura não pode encontrar-me com a sua varinha porque está de férias, longe de todas estas confusões....

Carlota encosta-se à parede a lembrar-se como ficou contente quando a mãe lhe disse que partiam para férias mais cedo do que o previsto por causa do calor que estava na cidade – Foi assim que decidimos vir aqui para a nossa casa de férias. Como temos uma pequena piscina, podemos dar uns mergulhos sem ter que andar muito e isso sabe muito bem quando está assim calor...

Carlota entretém-se a desenhar alguns pormenores no seu novo amigo, faz-lhe umas riscas nas calças, uns suspensórios e um boné. – Ainda não te contei que, por aqui, os meus melhores amigos são lagartos.

Quando era mais pequenina, a minha maior diversão era apanhar lagartos pelo campo.
Depois levava-os para casa, como quem leva um cão ou gato, a achar que precisavam de mim para tomar conta deles mas o meu pai, um dia, descobriu um a roer-lhe um livro e teve um ataque de fúria. Depois veio a minha mãe explicar-me que os lagartos gostavam de andar livres, que não eram bem animais de se ter em casa e eu, que já tinha percebido que, ou os fechava em caixas ou eles fugiam, decidi deixar de os contrariar, aos lagartos e aos meus pais...

Soltei-os mas fiquei sempre ligada a eles. Principalmente a um que tem uma mancha no focinho que parece mesmo um sorriso. – Carlota acabava de desenhar um sorriso num lagarto – Chama-se Jeremias e é sempre o primeiro que eu procuro assim que chego a esta casa.

Talvez tenha sido aí que tudo começou – olha em redor. – Sim, pensando bem, a culpa é toda dos lagartos... Ou não? O melhor é eu contar-te como tudo aconteceu desde o dia em que aqui chegámos.

...

Etiquetas: ,