passarola quer voar: 2. Na casa do Jeremias

sexta-feira, janeiro 4

2. Na casa do Jeremias

(2º episódio d' "A miúda dos lagartos")

Mal tínhamos acabado de desfazer as malas e lá fui eu à procura do meu lagarto sorridente. A casa mais longe da nossa devia ficar a uma meia hora a pé por isso, sempre brinquei por aqui à vontade, como se fosse tudo meu.

E assim andava eu, de rabo no ar e nariz colado ao chão, a analisar todos os lagartos que encontrava quando esbarrei com um pequeno muro que não existia e, por detrás desse muro que não existia, uma pequena casa que também não existia e, por detrás dessa pequena casa, estendida numa toalha a apanhar sol, uma senhora que me era estranha e que tinha atrás de si um senhor a ler um jornal sentado numa cadeira de praia.

Aproximei-me silenciosamente para que não me ouvissem e apanhei o maior susto até então quando do meio do nada me saltou uma figura enorme cheia de dentes a ladrar-me ruidosamente.

Antes de ter tempo de sentir a minha respiração parar, ouvi uma voz grave chamar um nome e a sossegar o meu monstro. Percebi que era só um simpático pastor alemão, bem meiguinho e brincalhão, que me tinha vindo cumprimentar.

Refeita do susto, reparei que estavam três pares de olhos a olhar para mim. Uns estavam escondidos por trás de uma janela e pareciam divertir-se com o meu susto. Os outros, eram os dos senhores que estavam agora junto a mim a perguntar-me como me chamava e como tinha ido ali parar. Não vendo nenhum adulto, acharam que os meus pais já estariam preocupados comigo.

- Chamo-me Carlota – respondi-lhes – e moro numa casa naquela direcção – apontei.
- Olá Carlota, eu sou a Vera, o meu marido é o Tomás, aquele tonto que se escondeu é o nosso filho Ricardo e este é o Gaudi – fez uma festa no cão que estava mais interessado em lamber-me as mãos.
- Fico mais segura se a formos levar a casa – disse dirigindo-se ao Tomás.
- Não é preciso, a sério que estou bem - expliquei eu enquanto os meus olhos curiosos procuravam o Ricardo. – Conheço bem estes terrenos todos. Aqui antes de ser a vossa casa, era a casa do Jeremias – sem o conseguir ver, sentia-o também a espiar-me pela janela.
- Nós fazemos questão – insistiu a Vera com um sorriso. – Vou só buscar uma t-shirt e venho já…

Enquanto a Vera e o Tomás foram a casa, não resisti a tentar espreitar pela janela que escondia o tal Ricardo. Sentia a sua respiração mas não conseguia ver ninguém, o que ainda me deixou mais curiosa. Estava prestes a empoleirar-me quando a voz do Tomás me chamou

- Vamos embora? – O Tomás e a Vera já estavam cá fora, a abrir a porta do Jipe que ali estava estacionado.

- Não sabia que havia aqui uma casa antes – comentou a Vera no caminho.
- E não havia – estranhei eu.
- Então e essa casa do Jeremias de que falaste?
- Ah, não! O Jeremias não mora numa casa... é o meu lagarto de estimação e anda sempre por aí.
- Um lagarto? Bem, esperemos que o Gaudi não o tenha encontrado antes de ti...

Entretanto já estávamos a chegar a minha casa. Os meus pais vieram receber a estranha viatura que se aproximava e foi assim que ficaram todos a conhecer-se.

Claro que eles não estavam preocupados comigo mas, por uma daquelas razões que só os adultos compreendem, fizeram questão de agradecer imenso aos novos vizinhos por me terem encontrado...

- Então e tu entraste assim numa casa que não conhecias, Carlota? – zangou-se o meu pai.
- Estava distraída à procura do Jeremias – desculpei-me eu, irritada por estar a ser acusada de invadir a privacidade de uma zona que sempre tinha sido minha e dos meus lagartos.

Para agradecer, convidaram os novos vizinhos para jantar connosco:

- Está decidido – avançou o meu pai. – É como um jantar de boas vindas à vizinhança. O que me dizem?
- Está bem – concordaram finalmente. – Somos três e eu trago uma sobremesa – sugeriu a Vera.
- Então ficamos a aguardar-vos por volta das oito e meia para um pequeno festim à beira da piscina – disse o meu pai, sorridente.

A Vera e o Tomás riram-se e seguiram o seu caminho. Os meus pais começaram os dois a cantarolar, todos entusiasmados com o seu programa de última hora e eu voltei às minhas expedições em busca do meu lagarto perdido – O que é que a Vera quereria dizer com aquela história do Gaudi não o ter encontrado antes? – pensei eu preocupada.

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