passarola quer voar: 4. O primeiro dia de investigação

sexta-feira, janeiro 18

4. O primeiro dia de investigação

et voilà... o quatro capítulo de A miúda dos lagartos...

Nessa noite sonhei com segredos em forma de nuvens de muitas cores que dificultavam a minha visão, assim como uma neblina matinal, espessa que eu ia cortando com uma tesoura de tamanho gigante. Tentava abrir caminhos para sair mas, sempre que abria um buraco no nevoeiro, em vez de me abrir passagem, soltava criaturas assustadoras. Da primeira abertura que fiz saltou-me uma bocarra cheia de dentes a ladrar, que me obrigou a fugir por um caminho onde chovia. Noutra abertura soltei um monstro metálico com voz de menino de carne e osso. Volto a correr para encontrar duas árvores em forma de homem e de mulher cujos braços me enrolam como uma serpente e quando me senti presa e sem caminho por onde fugir, abri os olhos e percebi que estava na minha cama, aprisionada pelo lençol.

Pelo silêncio que vinha do quarto dos meus pais deduzi que o sol era o único que já se estava a levantar e resolvi dar um passeio até casa dos novos vizinhos para descobrir mais pistas para o meu mistério. Se me encontrassem poderia sempre utilizar a desculpa do Jeremias. Afinal, eles não sabem que já o encontrei.

Abri a porta devagarinho e estava já com um pé fora de casa quando ouvi uma voz metálica a perguntar – Vai um lagartinho tostado para o pequeno almoço?
- Aiiiiii!!! É o Jeremias!!! Seu estúpido, tira já esse lagarto da boca! – gritei eu ao ver o Ricardo sentado no degrau da minha porta com uma pequena cauda verde a sair-lhe por entre os dentes.
- Tem calma, é só uma cauda que encontrei perdida – disse-me a voz do computador do Ricardo – estava a brincar contigo..
- Mas eu não gosto dessas brincadeiras, principalmente com os meus lagartos – gritei-lhe furiosa.
O Ricardo continuava a escrever divertido com a minha zanga – sabes que os lagartos quando estão em perigo libertam-se da cauda..
- Já tinha ouvido dizer…
O Ricardo deitou fora a cauda e voltou ao computador – fiz uma pesquisa e descobri que estes animais, normalmente chamados de lagartixas são muito importantes para o meio ambiente porque comem insectos e outras pragas domésticas.
- Isso é fixe para eu dizer aos meus pais – ainda estava a falar quando outra voz electrónica, agora feminina, continuou a explicação:
- “Quando se sente em perigo, a lagartixa desprende a cauda que continua em movimento durante alguns minutos para desorientar os seus predadores. A regeneração completa da cauda pode durar duas semanas”
- Quem é que falou agora?
O Ricardo escreveu – A minha enciclopédia electrónica. Sabe tudo sobre tudo!
- Uau!! Então tu tens sempre respostas para tudo…
- O computador ainda não pensa por mim… mas tenho acesso a muita informação..
- Isso é que me dava jeito para as minhas investigações.
- Que investigações?
- São cá coisas minhas. Mas diz-me uma coisa, como é que és capaz de escrever tão depressa?
- É muita prática…
- Tu nunca falaste?
O Ricardo abanou a cabeça enquanto escrevia – Pelo menos com a minha voz…
- E isso não te deixa triste?
- Quantos amigos tens com um computador como o meu? - Disse-me a sorrir.

Entretanto, tínhamo-nos sentado os dois no degrau da minha entrada e eu já sentia os meus pais a mexerem-se lá dentro. Antes que tivessem a ideia de me chamar, sugeri – Não queres ir comigo procurar o Jeremias?
- Então o Jeremias é uma espécie de lagarto de estimação? – perguntou enquanto nos levantávamos.
- É. Desde que me lembro que brincamos juntos. Deve andar lá para as tuas bandas…

Assim, consegui ir para onde queria e o melhor de tudo, com companhia para me abrir as portas – Vai uma corrida? – e, entusiasmada parti antes de ouvir resposta.

Cheguei à casa vizinha uns milésimos de segundo antes do Ricardo. Vi o Gaudi vir na minha direcção e já me estava a preparar para um grande ataque de lambidelas quando o vi continuar a correr na direcção da parede da casa e a ladrar ruidosamente.

- Corre Ricardo, é o Jeremias – gritei eu, novamente aflita pelo meu lagarto.
O Ricardo estava já ao pé de mim, ofegante da corrida mas a rir-se e a abanar a cabeça. O lagarto parou junto ao telhado, com o ar tranquilo que sempre lhe conheci.
- Tens que perder essa mania de te assustares por tudo e por nada.
- Tens razão – admiti eu enquanto afagava o pêlo do Gaudi – Aquele é o Jeremias, é amigo, não é para comer – tentei eu explicar ao cão que brincava agora comigo. Queria apresentar-to mas desconfio que não está com muita vontade de descer dali.
- Eu vou buscá-lo para ti– disse-me a voz do Ricardo enquanto este se ria.

Fiquei a analisar os movimentos dele. Vi-o ir buscar uma cadeira de praia e empoleirar-se em cima dela, depois saltou para o parapeito, trepou pela janela acima e, já alto, levou as mãos a umas telhas que espreitavam do telhado. Num impulso experiente colocou primeiro uma e depois a outra perna em cima das telhas. Ao fazê-lo, caiu um bocadinho de qualquer coisa que fez barulho ao tocar no chão, chamando a atenção da Vera que apareceu à janela.
- Olá Carlota, estás com o Ricardo? Ele saiu de manhã à tua procura…
- Bom dia, Vera! – disse eu encavacada enquanto o Ricardo me fazia sinais para não o denunciar no telhado – O Ricardo foi buscar qualquer coisa ao outro lado da casa.

- Ricaaaaardoooo!! – Chamou a Vera enquanto espreitava para fora da janela. Comecei a sentir a minha cara a começar a aquecer – o que me acontecia sempre que escondia alguma verdade de alguém. – Vou chamá-lo – desculpei-me para sair dali antes de me parecer com um tomate maduro mas, antes que me mexesse, ouviu-se o som de um telefone a tocar. O Gaudi saltou para dentro de casa e foi ter com a dona.

-Estou safa – pensei eu ao ver a Vera a virar-me as costas. Fiz um sinal ao Ricardo que começou a rastejar na direcção do Jeremias. Entretanto, agucei o meu ouvido para o que se passava no interior.

– Mas ele não está, já lhe disse!! - Onde estava podia ver que a Vera estava a ficar nervosa. – Nós não mudámos nem vamos mudar de ideias! – Alguém argumentou qualquer coisa do outro lado, ao que a Vera respondeu – Não!! – e voltou a escutar – Então diga – agarrou numa caneta e num papel - 9…4…8…2….Pronto. Ele vai-lhe ligar mas não vai adiantar muito….sim…até ao meio dia…vamos tentar – e desligou o telefone com violência. Por momentos ficou a olhar para o vazio enquanto, com as mãos segurava a cabeça. O Gaudi tentava animá-la com lambidelas. Num impulso, levantou-se e agarrou novamente o telefone – Tomás – ouvi-a dizer…e fui atacada por uma pedra pequenina. Olhei para cima e era o Ricardo impaciente, a querer saber se era seguro descer..

- Desculpa Ricardo, distraí-me… podes descer – confirmei eu ao comprovar que a Vera já tinha saído de vista e, ao vê-lo descer sem nada nas mãos, procurei o Jeremias no telhado - Encontraste-o? – Perguntei assim que aterrou com os dois pés no chão. Ele sorriu-me, brincou com as mãos e, como num passe de mágica, levou uma das mãos a um bolso de onde retirou … um lagarto muito sorridente – Olá!! – cumprimentei logo o meu bicharoco com muitas festinhas.

Ficámos um bocadinho a brincar com ele até que o ruído do Jipe que trazia o Tomás o fez saltar e fugir de novo noutra direcção.

- Nós vamos sair – anunciou o Tomás numa voz grave, sem olhar para nós, enquanto entrava apressado em casa.
- Vou atrás do meu lagarto – despedi-me ao perceber que já estava ali a mais. Saltei o muro e encontrei o Jeremias parado um pouco mais à frente. Sentei-me junto a ele e fiquei a ver a Vera, o Tomás e o Ricardo a entrarem na viatura e a sair em direcção à vila.
...

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