passarola quer voar: 18. A Assembleia dos 8 Sábios, parte II

sexta-feira, maio 2

18. A Assembleia dos 8 Sábios, parte II

e cá vem a segunda parte do capítulo da semana passada. enjoy! :)

– Rrrhorrrhon!! – Com um movimento dentro do ténis-bota, o Lagarto do dedal denunciou-se. Todos os lagartos olharam na sua direcção e começaram, praticamente ao mesmo tempo, a emitir sons estranhos:

- Zrupt extrup qruac!!
- Rispit!!
- Zrupt zrupt!!!

A Carlota estava mesmo confusa a olhar de um lado para o outro, quando o Jeremias, com o seu ar sorridente, explicou – Aquele Lagarto está sempre a dormir onde não deve. Desta vez, deve estar a ressonar desde o início da Assembleia….
- Ah!! – Fez a Carlota enquanto continha uma imensa vontade de rir.

- Rispit!! Rispit!! – continuavam os outros lagartos.
- O que tu não percebes são ofensas… os Sábios estão furiosos!!
- Rispit?? – Sorriu a Carlota para o Jeremias.

Entretanto, o lagarto vestido com panos coloridos levantou-se da sua sabrina e dirigiu-se lentamente, com um ar zangado à bota vermelha que começou a abanar com as patas até conseguir derrubá-la. Depois afastou-se e ficou a assistir ao espectáculo.

Ao virar-se, o ténis caiu sobre uma espécie de rolo de madeira, que rolou, bateu numa pequena estrutura fixa ao chão e voltou para trás, dando à bota o impulso suficiente para se virar sobre outro rolo de madeira, que se encontrava do outro lado do sapato que, da mesma forma, lhe deu um novo impulso para voltar a cair sobre o primeiro rolo. Por uns minutos ficou assim, balançando de um lado para o outro como se fosse um brinquedo num parque infantil ou uma cadeira de balanço que, com o movimento vai ganhando velocidade. Para a esquerda e para a direita, para a esquerda e novamente para a direita cada vez mais depressa.

Os restantes lagartos Sábios olhavam habituados para o ténis que abanava cada vez mais rápido. A Carlota não conseguia perceber o que se passava. Parecia que embalavam o lagarto para dormir melhor, mas então, porque é que estavam tão zangados por ele estar a dormir?

Nada daquilo fazia sentido, até ao momento em que o sapato ganhou tanta velocidade que seria impossível que o lagarto ainda dormisse dentro dele. De repente, já não são os cilindros que embalam o sapato mas o sapato que vai fazendo movimentar os cilindros, tocando cada vez mais no extremo da bota.

A Carlota percebeu pela falta de reacção dos lagartos que ela era a única que não estava à espera do que se sucedeu.

Subitamente o rolo do lado direito fugiu do sapato deixando que ele desse duas voltas completas para esse lado, até tropeçar novamente no rolo fugidio que, desta vez não o balança, mas colide com ele com tanta força, que um risco verde é projectado de dentro do sapato como uma bala. Atravessa o ar, bate com força contra a parede, faz ricochete e aterra de cabeça caindo com tanta violência com o dedal no chão que emite um grande TAAAAUUUUUUUMMMMMM como fazem os sinos das igrejas, ficando o lagarto dorminhoco praticamente enterrado lá dentro.

Ensurdecida pelo som, a Carlota não consegue tirar os olhos do objecto metálico, de onde sai uma cauda e duas perninhas verdes penduradas para os lados que se mantêm imóveis durante uns segundos. É um dedal muito maior que aqueles que a Carlota conhece e ela diverte-se tentando imaginar o tamanho das mãos da criatura que teria utilizado aquele utensílio. Os outros lagartos retomam muito sérios e silenciosos as suas posturas nos respectivos lugares.

A cauda do bicho começa a abanar. Para a frente e para trás, para trás e para a frente. O dedal começa a mover-se proporcionando um espectáculo delicioso para toda a Assembleia, a do palco e a dos espectadores.

A Carlota já se tinha esquecido do quadro da mãe e o riso começava a sair-lhe sem autorização. O lagarto consegue finalmente desequilibrar o dedal que cai na horizontal fazendo um ligeiro Toooiiiiinnnggggg deixando o bicho mais uns segundos imóvel na sua prisão.

O riso da Carlota aumenta. O Lagarto começa a rastejar na sua direcção. Está praticamente aos pés dela, empurrando o dedal sem conseguir sair de dentro dele. A Carlota sente mais uma vez vontade de ajudá-lo mas ele está tão cómico que é difícil interromper a cena.

O bocado de metal vai-se aproximando cada vez mais da Carlota em zigue zagues, provocados pela cauda que se agita sem parar. Está tão perto, que a qualquer momento pode chocar contra as suas sandálias. Carlota ainda mexe os pés, mas o bicho parece atraído pelo seu calor. As sandálias dela já não têm mais por onde fugir e o inevitável ocorre. O animal choca mais uma vez com toda a força, agora contra ela. Tooooiiiiiiiggggg!

O dedal volta a colocar o lagarto de pernas para o ar, anunciado que um novo espectáculo está prestes a começar. A Carlota não consegue controlar as gargalhadas e, embora não consiga ouvir o som de risos semelhantes ao seu, consegue perceber, pelo barulho divertido que fazem com as patas, que está rodeada de lagartos muito bem humorados. O dorminhoco volta a tentar reagir mas desta vez a Carlota não se contém e, cheia de boas intenções, agarra no dedal com uma mão para retirar o lagarto com a outra.

Mas os sustos do lagarto da bota ainda não terminaram. É que o pobre e velho animal está há tantas centenas de anos a viver no subsolo, que já não se lembra de como se parece uma menina e que altura tem. Foi pior a emenda que o soneto. O bicho, liberto do chapéu, agita-se com todas as forças que tem, preferindo mil vezes o conhecido e seguro dedal àquela mão daquele monstro desconhecido. Carlota tenta acalmá-lo mas é inútil, o animal mexe-se e remexe-se na mão gigante dificultando o seu salvamento. Aterrorizado acaba por morder um dos dedos da Carlota que rapidamente o põe no chão, ofendida com a sua ingratidão.

Ao sentir as patas finalmente em terra, o bicho pisga-se num piscar de olhos e esconde-se atrás do seu sapato desportivo onde fica escondido durante uns segundos. A voz do Sábio dos Sábios repõe ordem a toda a agitação.

- Caro colega, podemos prosseguir com a nossa Assembleia?

O bicho espreita apavorado enquanto devagarinho a Carlota pousa o dedal perto do velho ténis. Para não o assustar mais, afasta-se alguns passos e volta a dirigir a atenção para o Sábio dos Sábios.

- Penso que estávamos a falar do quadro da minha mãe – diz baixinho..

O Sábio dos Sábios tinha dado a ordem e dois lagartinhos puxavam numa espécie de carrinho, a tela da mãe da Carlota que se aproximava lentamente. Ainda estava escondida por trás do lençol branco que tinha desaparecido com o quadro e que um dos lagartos puxava agora com os dentes. A pintura ficou finalmente a descoberto.

Enquanto o lagarto assustado voltava a medo para a sua bota, levantava-se outro Lagarto Sábio do seu sapato preto e rastejava até ao quadro para apontar com o alfinete d’ama que trazia preso na cauda, aquilo que a Carlota já estava a adivinhar.

- Consegue-se distinguir perfeitamente um lagarto a abrir a entrada principal para o nosso domínio. - Com um movimento da cauda, o alfinete desenhou no ar uma circunferência em volta desse pormenor que ocupava uma zona de relevo na pintura. A Carlota não conseguia perceber como é que a mãe tinha conseguido captar exactamente esse momento. Teria ela tido consciência do que estava a ver?

- Mas vocês não podem ficar com o quadro só por causa disso. As pessoas não vão conseguir perceber o que está ali… - atreveu-se a Carlota.
- Mas esse é um risco que nós não podemos correr – explicou o Sábio dos Sábios.
- Já não é a primeira vez que alguém repara no formato da pedra mas o quadro denuncia completamente a sua função. – continuou o lagarto da voz tremida.
- Até eu já tinha visto a pintura e não tinha conseguido ver isso..
- Mas um olhar mais sério e prolongado certamente que captará a acção que aqui se desenrola. – voltou o Sábio dos Sábios. – A nossa decisão foi ponderada e com base na opinião de todos os membros da nossa espécie que atempadamente foram observar o objecto à superfície. Ela é irreversível.

- Então continuo sem perceber o que estou aqui a fazer – disse a Carlota contrariada – quase que preferia não ter sabido do quadro…
- É que existiu outra ocorrência mais grave e para a qual não encontramos solução – voltou o lagarto da voz tremida, enquanto os outros lagartos confirmavam com as suas cabeças. Entre o ténis vermelho e o dedal prateado, saiam dois pequenos olhos assustados que acompanhavam toda a conversa.
- Mas para perceber melhor, gostava que nos acompanhasse numa visita pelo centro das nossas instalações.
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