passarola quer voar: 19. Uma visita guiada por Velhos Sábios, parte I

sábado, maio 10

19. Uma visita guiada por Velhos Sábios, parte I

Com um dia de atraso, sai mais uma Carlota no país das maravilhas... Este capítulo também dividido em 2 por ser muito grande. A descrição do planeta dos legartos continua já na próxima semana. :)

A saída da sala da Assembleia foi de tal forma bonita, que a Carlota pensou estar a assistir a um espectáculo coreografado para uma grande companhia de lagartos. As centenas de milhares de animais que faziam parte da Assembleia começaram a sair, ordenadamente pelas filas de trás. Os primeiros foram os lagartos do chão, paredes e tecto, da última fila que se movimentaram em simultâneo, rastejando com passos ensaiados para desenhar um triângulo no ar, virado para a grande porta da saída. Quando o lagarto que encabeçava a fila chegava ao limite da porta, os lagartos do chão, paredes e tecto da penúltima fila começavam a rastejar, indo unir-se ao centro do triângulo formado pela fila anterior e por aí adiante até chegar aos da primeira fila junto do palco.

Sucessivamente foram-se desenhando triângulos na sala que se uniam e sobrepunham, criando a ilusão óptica de uma sucessão de formas geométricas em perspectiva que atravessava todo o espaço e que, coordenadamente, se movimentava para sair.

Sem que a Carlota desse por isso, o seu queixo começou a cair de admiração em direcção ao peito e o pequeno lagarto do dedal aproveitou a distracção para se aproximar. Já tinha percebido que ela não constituía perigo e sentia-se envergonhado pela sua reacção anterior. Devagarinho começou por fazer as pazes com a sandália que o deixou trepar por ela acima e pedia já desculpa ao tornozelo da Carlota quando esta se apercebeu que tinha companhia. Devagarinho baixou-se para lhe fazer uma festa na cabeça. O lagarto, satisfeito, deu umas voltas por cima do seu pé para se acomodar melhor na sandália. A Carlota sorriu e voltou a dirigir os olhos para o último triângulo verde que desaparecia agora da sala.

Tinha chegado a vez dos Velhos Lagartos Sábios mas nada acontecia. Olhavam todos para o velho ténis que não mostrava vontade de se mexer. O Lagarto do anel cor de laranja fez o sinal aos outros que olharam para o viajante do pé direito da Carlota, percebendo que era inútil esperar o cumprimento de regras por parte deste colega. O Sábio dos Sábios consentiu a infracção e os lagartos das sabrinas azuis levantaram-se exactamente ao mesmo tempo e começaram a andar. Entretanto, levantavam-se já os ocupantes dos sapatos vermelhos e, no momento certo, também o fizeram os inquilinos dos sapatos pretos. O último a largar o seu trono foi o Sábio dos Sábios que veio ocupar um lugar entre os colegas dos saltos pretos que estavam agora à frente da Carlota. Começaram a andar e os Sábios emproados das fitas na cabeça colocaram-se um de cada lado da Carlota, indicando-lhe que deveria caminhar entre eles. Os Sábios das sabrinas escoltavam o Jeremias logo atrás dela.

Ao longo do caminho por uma passagem semelhante às que já atravessara, a Carlota teve que fazer um esforço enorme para não estragar a marcha dos Sábios. Os seus pés eram tão grandes e os seus passos tão diferentes dos rastejantes lagartos que foi o tempo todo com medo de pisar alguma daquelas sapientes criaturas. Isto para não falar do cuidado que teve que ter para não deixar cair o Lagarto do dedal que já dormia bem confortável no seu pé.

Quando por fim os lagartos pararam, a Carlota respirou de alivio. Só depois reparou na beleza do enorme espaço que a rodeava. Nunca tinha visto nada assim. As paredes e tecto daquela imensa caverna estavam pintadas a branco e brilhavam com uma luminosidade tão bonita como a Carlota nunca tinha visto na vida. Mais uma vez o queixo tentou fugir-lhe para o peito, o nariz deleitou-se com a frescura do ar e os olhos não pararam de piscar, tentando captar toda a beleza do espaço.

No chão do interior da terra existia um imenso jardim relvado, de onde nasciam plantas, flores e até troncos de árvores tão altos que furavam a enorme massa terrestre até à superfície. As clarabóias naturais que criavam, deixavam espreitar fracos raios de sol para aquele mundo irreal.

Até parecia que estava dentro de um desenho ou de uma pintura. Era tudo tão estranho e tão bom ao mesmo tempo que a Carlota se esqueceu dos pequenos lagartos aos seus pés e começou a andar em volta, sem prestar atenção. Os Velhos Sábios tiveram mesmo de perder a compostura para encontrar refúgio longe daqueles passos indomáveis. O Jeremias percebeu mas não interferiu. Todos imaginavam o que seria ver aquele espaço pela primeira vez para uma pequena humana.

Das raízes das árvores cresciam redomas feitas de vidros de cores diferentes como se fossem cogumelos e, dentro delas, grupos de lagartos circulavam apressadamente em redor de objectos, libertando sons abafados que pareciam ser de obras. Carlota quis aproximar-se para ver melhor e lembrou-se finalmente dos seus guias.

- Desculpem. Parece que me deixei perder… - disse baixinho enquanto se inclinava para espreitar o esconderijo dos Sábios. Eles aproximaram-se a medo mas continuaram as suas explicações:

- Aqui fica o núcleo do complexo sistema de comunicações que liga várias comunidades de répteis. – explicou o Sábio dos Sábios de uma distância segura.

- Dentro de cada oficina – continuou o da voz tremida - os lagartos trabalham as matérias que trazemos da superfície.

Lentamente começaram a aproximar-se para que a Carlota pudesse espreitar a redoma de vidro vermelho que era pouco mais baixa que ela. Agora com mais cuidado, ela ajoelhou-se à entrada e sorriu ao identificar a confusão de cores, cheiros e ruídos que ocupavam aquele espaço. A imagem era a de uma grande fábrica, toda construída com restos de materiais que ela conhecia bem do seu mundo: garrafas de plástico, latas de alimentos, bocados de máquinas de utilizações diversas, objectos de vidro, madeira, plástico, restos de tecidos e até partes de brinquedos de criança eram ali reutilizadas com outros objectivos.

- Todos estes materiais são cuidadosamente seleccionados e trazidos das vossas lixeiras ou centros de reciclagem. - A Carlota não pode esconder um sorriso quando o emproado dos emproados utilizou a expressão cuidadosamente seleccionados para se referir àquela mistura de tralha.
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