passarola quer voar: 20. De regresso ao buraco

sexta-feira, maio 23

20. De regresso ao buraco

Leitinho e biscoitos... já há muito tempo que não se comia nesta história ;)

A Carlota sentiu-se triste com a última informação do grande Sábio. Ainda não se queria ir embora. Tinha tantas perguntas que lhes queria fazer. Então e a história do Mário e do Henrique? E o homem sem rosto? Mas os lagartos já não a ouviam. O Jeremias e o lagarto mensageiro apressavam-na para que regressasse ao buraco. Em corrida retornaram pelos longos corredores até à grande porta da parede de argila. O Jeremias abriu-a e acompanhou a Carlota até junto dos seus desenhos.

- Esta é a última vez que ouves a minha voz – A Carlota sentiu-se triste – Já sabes que não podes contar nada disto a ninguém.
- Mas eu não vou aguentar… E porque é que não podes continuar a falar comigo?
O lagarto trepou-lhe até à mão que ela levou para perto do rosto. Com o focinho fez-lhe uma festa no nariz. – Não precisas ficar triste, vamos continuar a ser amigos e eu vou sempre arranjar formas de comunicar contigo. Como sempre foi, só que agora temos um segredo. Isso faz de nós amigos, ainda mais amigos.

A Carlota esboçou um sorriso e aproximou-se para dar um beijinho na pequena cabeça do Jeremias que, um bocadinho envergonhado, voltou a insistir.

- Prometes não contar nada a ninguém?
- Prometo – disse a Carlota – Só conto ao Ricardo.
- Nem ao Ricardo – ralhou o Jeremias.
- Mas ele pode ajudar-nos, é filho da Vera e do Tomás e é da mais alta confiança…
- Está bem. Vou consultar a Assembleia e levo-te a resposta antes de acordares amanhã.
- É verdade, que horas são? Há quanto tempo estou aqui?

Nisto começou-se a ouvir o ladrar do Gaudi e a Carlota sentiu passos e vozes a aproximarem-se.
- Adeus minha pequena humana – despediu-se o lagarto, fazendo com que a Carlota sentisse mais uma vez que ela é que era o bicho de estimação dele.

- Hei!! Estou aqui!! – Começou a gritar.
- Carlota!! Onde é que estás? – Era a voz do pai.
- Aqui!! Aqui!! – Gritava o mais que podia só que o buraco estava bem escondido. Se a Carlota não o tinha conseguido ver durante o dia, antes de cair, muito menos iriam vê-lo agora, que já era noite. A Carlota pensou que não a descobririam nunca, ali enfiada.
– Pai!! Mãe!! Venham buscar-me…. – Sentiu a voz falhar com a emoção. Procurou algo a que se pudesse agarrar para trepar por ali acima mas não encontrou nada. Lembrou-se da lanterna que costumava ter na mochila sapo mas não se recordava da última vez que tinha visto a mochila. Olhou em volta e encontrou-a a um canto, caída. Precipitou-se para ela e ia tirar a lanterna quando reparou nas pedras e paus que tinha juntado e, com uma nova energia, começou a atirá-los um a um, com toda a força, tentando fazer com que chegassem à superfície. – Estou aqui!! Neste buraco!!

Viu as primeiras pedras que atirou voltarem a cair no chão mas, finalmente, conseguiu atirar um pau que furou a terra e foi parar a poucos centímetros do focinho do Gaudi que já sentira o cheiro da Carlota por ali. Excitado, começou a ladrar e a escavar tão determinado que todos vieram ajudar.

- Carlota, Estás aí? – Era a voz do Tomás.
- Nós estamos aqui filha, diz que estás bem…
- Estou bem pai, estou bem!! Estou aqui… - Gritou a Carlota a chorar de alegria por sentir o carinho do pai.
- Vai avisar os outros e tragam pás, cordas e coisas que nos possam ajudar – Era a voz autoritária do Tomás.
A luz da lua começou a entrar numa dança com as lanternas dos seus salvadores. O primeiro que a Carlota viu foi o Gaudi que continuava a ladrar e a escavar entusiasmado.
A Carlota tossiu por causa da terra que lhe caía em cima da cabeça e que ia quase engolindo com os soluços do choro.
- Já aqui estamos pequenina, o Henrique foi buscar cordas para te tirarmos daí. – continuou o pai a falar com emoção.
- Eu estou bem, pai!! – Colocou de novo a mochila aos ombros, pronta para partir e ficou a olhar, com um sorriso entre lágrimas, para as luzes que a ofuscavam. – Está tudo bem!!
- Não te dói nada? Andas bem?
- Sim papá, está tudo bem – tranquilizou-o a cada vez mais sorridente Carlota.

Em pouco tempo voltou o Henrique com o Mário e com a mãe.
- Lagartinha, tu estás bem? Tarda nada já estás aqui. – A Carlota percebeu que a mãe também estava a chorar.

Atiraram-lhe uma longa corda com vários nós onde ela se ia apoiando. Sem problemas e, sozinha, foi subindo até um ponto em que, não aguentando a ansiedade, os adultos deram a indicação para que se agarrasse bem e puxaram-na tão depressa que num piscar de olhos já estava a ser abraçada, beijada, acarinhada pela mãe, pelo pai, pelo Henrique e até pelo Tomás que a Carlota sempre tinha pensado que não gostava dela.

Regressaram à casa todos juntos, com o Gaudi aos saltos em volta deles. O Mário aguardava-os à entrada da porta e também ele, na sua forma desajeitada, se mostrou feliz por encontrá-la sã e salva.

A Carlota explicou que tinha caído quando andava a brincar com o Jeremias e que depois devia ter desmaiado ou qualquer coisa porque só se lembra de acordar, já no buraco, onde se entreteve a fazer desenhos na parede para que o tempo passasse mais depressa. Deve ter adormecido e só acordou com o ladrar do Gaudi.

- Ainda bem que tudo acabou bem – Disse o Mário enquanto bebiam leite por canecas e comiam biscoitos na mesa da cozinha.
- Tudo não, tu ficaste sem o teu quadro… - disse a Carlota à mãe, ao lembrar-se triste da decisão irreversível da Assembleia.
A Isabel suspirou e respondeu – Ele ainda vai aparecer…
A Carlota ficou com um apertozinho no coração. Queria contar-lhe mais do que podia e achou que o melhor era ir para a cama dormir sobre o assunto. No caminho para o quarto, passou pelo Tomás que se despedia do Mário à entrada e não resistiu a perguntar.
- O Ricardo pode vir ter comigo amanhã de manhã?
O Tomás baixou-se para ficar à sua altura e fez-lhe uma festa na cabeça.
- Eu digo-lhe para vir logo de manhãzinha. Aliás, tenho impressão que ele nem deve conseguir dormir muito com a excitação de saber o que é que te aconteceu.
- Obrigada Tomás! – A Carlota deu-lhe um beijinho no rosto e, estava já a avançar para o quarto, quando ele a chamou.
- Carlota, eu queria pedir-te desculpa pelos últimos dias. É que tenho andado enervado com muitas coisas e tenho me portado um bocado mal com toda a gente.
- Não faz mal. – Disse a Carlota com um sorriso sincero e continuou a andar.

- Oh!! – soltou a Carlota, já no seu quarto, ao encontrar um pequeno Velho Lagarto Sábio muito enfiado na sua sandália, com um grande dedal na cabeça – Tu ainda estás aí? Como é que eu não te senti?
O Lagarto deu duas voltas na sandália que a Carlota tinha acabado de tirar do pé e continuou a dormir muito sossegado. Ao apagar a luz, a Carlota desejou sonhar que estava simplesmente a dormir e o seu desejo foi concretizado.
...

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