passarola quer voar: Uma última coisinha antes de ir...

sexta-feira, julho 25

Uma última coisinha antes de ir...

...O fim da Carlota! É o último bocado da primeiríssima história longa que escrevi e que funcionou como um exercício onde experimentei muitas técnicas, géneros e estilos. Acabei por escolher e assumir o ambiente meio assombrado do início deste último capítulo para o género de livros que quero escrever. A Casa do Vento já veio nesta linha e espero ter tempo para que sigam muitos mais. Depois da escrita desta Miúda dos lagartos, muito aprendi e evolui, mas esta, lá está... foi a primeira! :)

26. O fim das férias, parte III

(...)
A aparelhagem estava ligada com o volume no máximo e o som de um saxofone envolvia todo espaço da tenda. A Isabel cantarolava, dançava e… pintava. Um a um, todos os habitantes da casa, foram ocupando um lugar sentado, numa manta que cobria o chão da tenda. Depois entrou o Jeremias e, aos bocadinhos outros lagartos vieram juntar-se a eles mas, além da Carlota, ninguém reparou.

Ficaram todos em silêncio a observar a artista a trabalhar até que, quando menos esperavam, a viram parar, guardar os pincéis e sentar-se junto deles. Ninguém foi capaz de perguntar nada mas, na expressão de admiração de cada um podia ler-se a certeza de que o trabalho estava terminado.

A Carlota sorriu ao identificar numa mancha abstracta a gruta da praia que tinham visitado essa manhã. Fixou o olhar e julgou ver um contorno negro que poderia ser o seu fantasma a cantar canções de pescadores aos muitos lagartos que habitavam a pintura. Era definitivamente o episódio que faltava para que a sua mãe pudesse acabar o quadro da história das férias. Estava perfeito. O problema é que, apesar dos inúmeros retoques que tinham sido dados por todo quadro, um pormenor continuava inalterado. Ainda era necessário apagar uma parte daquela história.

- Fim! – Exclamou a Isabel com um brilho nos olhos. – Já não lhe toco mais.

O Jorge foi o primeiro a abraçar a mulher, orgulhoso do trabalho dela e, comovidos, todos os outros seguiram o seu exemplo. A Carlota ficou à espera do momento certo para chamar a atenção da mãe e este surgiu quando o Henrique decidiu que ia buscar uma garrafa de vinho para que todos pudessem partilhar o momento convenientemente. Lembraram-se também de copos e petiscos para acompanhar e assim, todos começaram a movimentar-se num frenesim de preparativos para mais uma comemoração.

A Carlota avançou para junto da mãe que lhe perguntou:
- Então lagartinha, o que é que achas?
- Gosto muito, mamã. – Deu-lhe um abraço e passou rapidamente ao que lhe interessava – agora só falta uma coisa…
- Ah, estás aí Carlota – puxou-a o pai enquanto o Henrique lhe roubava novamente a mãe, para lhe servir um copo de vinho – A Vera e o Tomás também estavam curiosos para ver o quadro. Não queres ir chamá-los?
- Sim… mas, tem de ser agora?
- Vai lá num instante – disse o pai a sorrir – não sejas preguiçosa.

A Carlota saiu a correr e rapidamente chegou à casa dos vizinhos que se preparavam para jantar.
- Só se levarmos a comida que temos aqui – comentou a Vera, muito prática.
- Sim, não podemos perder isto – confirmou o Tomás.
- Fixe – gritou a voz electrónica do Ricardo, já a preparar-se para disparar a correr na direcção da casa vizinha.
- Mas vamos de jipe que, depois do dia de hoje eu não me consigo mexer – ainda gritou a Vera mas o Ricardo, a Carlota e o Gaudi já tinham partido em grande velocidade.

Teriam chegado primeiro se a Carlota não tivesse tropeçado e perdido o seu gancho favorito em forma de Joaninha, o que os obrigou a perder uns minutos até o encontrarem escondido no chão.

Assim, quando chegaram com o cão já o Tomás e a Vera brindavam com todos os outros à obra completa da Isabel. A música era alegre e divertida e todos dançavam numa grande roda, de copos na mão. O Jeremias veio recebê-los à porta da tenda e a Carlota sentiu que os olhos de todos os lagartos estavam agora postos nela.

Procurou a mãe no meio da festa e encontrou-a no centro de uma grande roda de dança cigana que dava vivas e hurras ao seu novo quadro. Tentou furar mas não conseguiu. O Ricardo mantinha-se ao lado dela e o Gaudi ladrava que nem um louco do lado de fora da tenda. Fizeram uma nova tentativa para furar a roda mas, ao invés de os deixarem passar, o Henrique e o Mário agarraram-nos pelas mãos e eles não tiveram outro remédio senão dançar até ao fim da música. Saltaram e pularam como todos os outros mas, assim que se ouviu a última nota a Carlota puxou a mãe para um canto.
- Não falta nada no teu quadro? – perguntou.
- Claro que sim, minha lagartinha, faltam as tuas duas últimas pinceladas. – confirmou a mãe, muito satisfeita.
Uma nova música recomeçava a animar o grupo quando a Isabel colocou a filha à frente do quadro e lhe estendeu o pincel. O Ricardo seguiu-as atentamente com o olhar.

A Carlota observou, analisou, esticou o braço, fechou um olho, fechou o outro e, quando se sentiu preparada, deu duas pinceladas rápidas mesmo em cima da porta de entrada para a sala da Assembleia dos 8 Velhos Lagartos Sábios.

O grupo estava tão envolvido na festa que ninguém reparou no piscar de olhos que a Carlota fez ao Ricardo, no acenar da cabeça do Jeremias, na saída silenciosa dos lagartos, no Gaudi que tinha parado de ladrar e, muito menos, no olhar abismado da Isabel que nunca tinha visto a filha dar duas pinceladas tão indiscretas num quadro seu e que ainda não tinha tido tempo para absorver uma alteração tão drástica num trabalho tão perfeito.
Fim

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