passarola quer voar: A minha vida num minuto

terça-feira, janeiro 13

A minha vida num minuto

Olho para o gestor de conta enquanto aguarda a minha resposta e vejo-me a cozinhar nessa bancada com vista para o rio. Nos últimos três anos devo ter visto centenas de casas, muitas em fotografias, muitas ao vivo. Porque é que eu tinha que me apaixonar agora? Porquê agora? Olho para o meu pai, sentado ao meu lado com um olhar optimista e percebo que ele ainda não percebeu. Ou não quer perceber. Que loucura..o que é que eu estou aqui a fazer? E o gestor de conta à espera… mas eu já não o estou a ver…

Amor à primeira vista, uma necessidade de fugir ou…um sinal de que vai tudo correr bem? Amor. Foi amor. Assim que lá entrei, por acaso, e vi toda aquela luz a invadir as janelas que preenchem as paredes de todas as divisões, eu senti que ali era o meu lugar. Aquela era a minha casa!

Timidamente subi as escadas improvisadas que levavam ao pequeno sótão ainda em construção e fui automaticamente atraída para A Janela. A Janela com que sempre sonhei. Abri-a devagarinho e fiquei ali com a cabeça de fora, preparada para levantar voo… com uma enorme perspectiva sobre todas as histórias que ainda iria escrever… contos, livros, guiões, peças de teatro… Aqui vai ser o meu pequeno estúdio e zona de lazer. Encaixei o meu sofá cama mesmo ali por baixo, de forma a que sentada, ficava a ver os telhados a debruçarem-se para o rio e deitada… ah! deitada, ficava a ver as estrelas, mesmo por cima da minha cabeça.

Porque é que não pode ser assim? O que é que eu fiz de errado?

O meu pai, ao olhar para a planta da casa, perguntou-me se não seria pequena para os dois. Pequena? Se calhar o problema era esse. Andei muito tempo à procura de casas para dois quando devia estar a ver casas para um… Por isso é que só agora a encontrei. Tenho vontade de dizer-lhe isso, de explicar-lhe que não era suposto ficarmos juntos… que todos os sinais nos diziam o mesmo e só nós é que não queríamos ver. Foi amor, porque a casa era só para mim e assim é que tinha que ser… E o gestor à espera da minha resposta e os olhos do meu pai, optimistas.

Volto a olhar para a listagem de documentos a apresentar e tenho vontade de rir ao pensar no extracto da minha conta bancária nos últimos meses.. Como é que isto aconteceu? Estava tudo a correr tão bem..este ano ia ser tão bom, ia ter tanto trabalho e agora… como é que foi? O que é que eu fiz de errado? Confiei demais? Não, eu nunca parei de trabalhar, mas… estava tudo a correr tão bem. Antes do verão começar tinha tantas confirmações, tanto trabalho pronto a arrancar no final do verão… e o verão acabou e… nada. Passou-se um mês e as colocações dos professores, dois meses e os cortes de orçamentos, três meses e as guerras com a ministra… e OQUEÉQEUTENHOAVERCOM ISSO? Porque é que EU é que tenho que pagar?

E os olhos do meu pai confiantes… no contrato de trabalho Dele. Dele? Sim… ainda lhe posso pedir para assinar outro contrato comigo, mesmo que seja só a fingir, como têm sido os últimos meses do nosso casamento. Que ironia, nunca dependi dele para nada… até agora, que era suposto já não estarmos juntos. Tudo por causa das colocações dos professores, dos cortes nos orçamentos e das guerras com a ministra. Dez anos! Dez anos de crescimento profissional, dez anos de independência financeira e agora… obrigada a pedir-lhe o cartão emprestado para poder ir ao supermercado.

Um amor? Uma fuga? Ou... um sinal de que vai tudo correr bem? O que é que esta casa significa para mim? O Gestor de conta congelado à espera da minha resposta e os olhos do meu pai sem quererem ver. Sim porque é impossível que não saibas, a mãe já te deve ter dito qualquer coisa. As mães sabem sempre, mesmo antes de nós… e tu gostas tanto dele. Mas eu e ele já não somos casados. Partilhamos uma casa, uma mesa, uma cama… e agora até um cartão multibanco, mas já não somos casados.

O Gerente de Conta congelado e eu sem saber por que é que estou ali…

Ou sei, preciso de um sinal de que vai tudo correr bem. As coisas vão resolver-se, o trabalho vai voltar e vou poder pagar a prestação desta casa. Todo o meu trabalho não pode ter sido em vão. Tantos anos, e o que é que eu tenho agora. Sinto uma enorme vontade de chorar mas os olhos do meu pai…

Volto a olhar para as simulações, prestações, spreads e quero dizer a verdade. E a verdade… a verdade é que eu não tenho nada. Daqui a 3 meses faço 33 anos de vida e o que é que eu conquistei? O que é que eu tenho de meu?

Se eu perguntasse ao gerente de conta, sei o que ele me respondia… Nada! A tua vida não vale nada! Fazia-me uma festa na cabeça e mandava-me embora… E eu sinto uma enorme vontade de chorar, mas o meu pai está tão confiante… e aquela casa. Porque é que eu tinha que a encontrar agora?

O meu minuto está a acabar-se. Vou ter que dizer qualquer coisa. Dou-lhe a resposta que quero dar… digo-lhe que sim, combino um dia da semana que vem para trazer todos os documentos assinados, forço um sorriso… sinto as lágrimas a quererem trepar-me para os olhos e a angústia a apertar-me o peito. Finjo que não sei que estou a mentir, que o meu casamento não acabou, que não sei que não posso ter aquela casa, que os milagres não existem e que eu nunca a devia ter encontrado… não agora…

O Gerente de Conta e o meu pai comemoram este grande passo na minha vida e eu, eu com uma enorme vontade de chorar e a certeza de que é por amor… por amor à casa que não posso ter.

Etiquetas: ,