passarola quer voar: A criatura do poço 2

terça-feira, dezembro 29

A criatura do poço 2

Porra. Como é que eu saio daqui? Não tenho mãos para ligar o carro nem pés para chegar aos pedais. O meu corpo está completamente deformado e ainda não percebi o que é que me aconteceu… O que é que eu vim cá fazer? Aquilo não era ela… aquela criatura da casa de banho… Aquele cheiro nauseabundo, aquele horror ensanguentado. O meu primeiro instinto foi fugir e estava certo… Ela tinha-se transformado num monstro e era por isso que tinha deixado de ir trabalhar e de responder às chamadas telefónicas. Estava esclarecido, podia ir-me embora. Não estava aqui a fazer nada… mas eram os olhos dela… Fiquei congelado a olhar para os olhos dela o tempo suficiente para reparar nos movimentos do gato. Desesperado à volta dela, a roer-lhe qualquer coisa indescritível daquela coisa disforme em que ela se tinha transformado. O animal devia estar com fome. Se não podia fazer nada por ela, pelo menos podia salvar o gato. Aproximei-me com medo, agarrei no gato e foi quando vinha a sair que ouvi a voz dela. Senti um arrepio de medo. Ela estava a falar comigo… qualquer coisa sobre o poço que não quis ouvir. Ainda tentei virar-me para voltar a olhar para ela mas não fui capaz. Fugi dali horrorizado com o gato nos braços e já cá fora, reparei pela primeira vez naquele poço de pedra que nem sabia que existia. Tantas vezes aqui vim, como é que nunca tinha visto o poço? E eu estava já cá fora, são e salvo a procurar o telemóvel no bolso. Ia ligar para as emergências, pôr o gato no carro e sair daqui para fora. A esta hora estaria seguro em casa a tentar dormir. E quando finalmente adormecesse iria ter pesadelos com a imagem dela, é certo… ou daquilo em que ela se transformou, caída no chão da casa de banho a olhar para mim e a pedir-me ajuda, naquela voz que tantas vezes já me tinha sussurrado aos ouvidos. Mas ela tinha-me deixado, tinha escolhido viver ali, sozinha com o gato. Porque é que eu me fui preocupar só porque não respondeu a alguns telefonemas? Como se tivesse sido a primeira vez. Mas não. Estúpido fui lá e, quando já estava cá fora, são e salvo olhei para o poço. Para o poço que já deveria ter visto noutras visitas a esta casa… Como é que nunca o tinha visto? O gato foi mais esperto, deu um salto do meu braço e fugiu logo, com medo. E eu fiquei ainda mais curioso. Estupidamente curioso o suficiente para me aproximar do poço e olhar lá para baixo. Porquê? Porquê? Porque é que não entrei logo para o carro, carreguei no acelerador e então de longe, muito longe daqui, ligava a chamar ajuda. Agora é tarde demais. Agora também eu me transformei num monstro. Resta-me esperar que me venham salvar. Eu avisei que vinha vê-la. Alguém há-de vir e eu hei de alertar para que não se aproxime do poço… Só preciso de descrever a criatura horrível que está lá em baixo para que mais ninguém se volte a aproximar dali…

a ser continuada

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