passarola quer voar: A criatura do poço

sexta-feira, dezembro 18

A criatura do poço

Se o meu gato não me tivesse vindo acordar a meio da noite, nunca teria dado por nada. Talvez a noite tivesse passado e eu agora estava a acordar com o despertador, como todos os dias acordo. A levantar-me do quentinho da cama, a reclamar com o frio do inverno e a avançar para esta mesma casa de banho de onde não sei se algum dia terei coragem para voltar a sair. Estaria agora a olhar para o reflexo dos meus olhos ensonados e a ver a imagem de mim que sempre conheci. Eu não sou esta criatura que o espelho reflecte. Eu não quero ser esta criatura que o espelho reflecte… Se pudesse fazer retroceder o tempo doze horas… bastavam-me doze horas, e poderia mandar calar o gato, virar-me para o outro lado e continuar a dormir. Mas não. Acordei, ouvi o barulho e levantei-me. Assustada, mas curiosa, enfiei as botas e um casaco quente por cima da camisa de dormir e fui espreitar à janela.

No meu quintal tinha nascido um poço de pedra!

Assim como nasce um pé de feijão gigante numa história de crianças, no meu quintal tinha nascido um poço de pedra! E o pior, é que não tinha nem galinha de ovos de ouro nem gigante no fundo. O que lá estava era algo indescritível e inimaginável que eu desejava poder nunca ter conhecido. Mil gigantes à criatura que teve o prazer de me desfigurar em apenas alguns minutos. Onze horas e quarenta e cinco minutos. Se voltasse onze horas e quarenta e cinco minutos atrás, ainda iria a tempo de me salvar. Fiquei cerca de quinze minutos a olhar para o poço pela janela a tentar explicar o que estava a ver, a pensar que lá fora estava frio de mais para sair de casa e que de manhã teria mais do que tempo para sair e confirmar que me tinha brotado um poço de pedra no quintal. Mas não resisti à curiosidade. Enfiei umas meias e umas calças quentes por baixo da camisa de dormir, uma camisola de lã por cima, voltei a vestir o casaco e apertei-o bem para me proteger do frio. Saí para o quintal e avancei assustada para o poço. Se voltasse onze horas e trinta minutos atrás, ainda podia afastar-me e voltar para dentro de casa como se nada de estranho tivesse acontecido. Tinha nascido um poço de pedra no meu quintal, ponto final, vamos voltar a dormir. Mas espreitei para o fundo do poço e a partir desse momento de nada me valia voltar onze horas e vinte e nove minutos atrás. Já era tarde demais…


a ser continuada

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