passarola quer voar: 10. Um churrasco molhado

sexta-feira, fevereiro 29

10. Um churrasco molhado

este vem com churrascada e stress... ai os wraygunn e a janta ainda não está feita...

Depois de uma breve separação, voltámos a reencontrar-nos para o prometido churrasco que soprava cheirinhos deliciosos por toda a área. Até o Jeremias fez questão de aparecer.

Estávamos na brincadeira com o Henrique, quando a minha manchinha verde favorita atravessou o terraço em direcção à porta de casa. Atrás dele vinha o Gaudi, a abanar a cauda satisfeito. Entraram pela janela do quarto da Vera, um rastejando pela parede e o outro com um salto no ar. Eu e o Ricardo fomos ter com os nossos bichos pela porta de entrada. Ainda não estávamos no quarto já podíamos ouvir um toque insistente no telemóvel da Vera. O Ricardo foi buscá-lo e veio a correr mostrar-me o visor que exibia o número que já conhecíamos de cor da Residencial 3 Estrelas. Ficou um milésimo de segundo a pensar e fez-me sinal para que o atendesse. Eu abanei a cabeça.

- Não posso!! O que é que a tua mãe ia dizer?
Acho que ainda hesitou em atender com a sua voz electrónica mas nesse momento, a Vera apareceu e o toque calou-se. O Ricardo estendeu o aparelho à mãe que ficou bastante nervosa depois de ver o número. Desligou-o num impulso e, depois de sussurrar o acontecido ao ouvido do marido, voltou para junto dos meus pais.

- Não podíamos atender sem que ninguém desconfiasse. – animei o meu amigo e iniciámos uma volta de reconhecimento pelo local da festa. O ambiente estava animado, a música era agradável e, à excepção do Tomás que se mantinha um bocado distante, toda a gente parecia divertida.

Voltámos a seguir o Jeremias que era seguido pelo Gaudi e fomos dar com o Mário ao telemóvel na parte de trás da casa. Desligou antes que pudéssemos ouvi-lo mas resolvemos segui-lo o resto da noite.

Aproximou-se do Tomás e, dificilmente, lá conseguiu que ele se abstraísse dos pimentos que assavam no carvão e começasse a conversar com ele. Fez-lhe perguntas sobre a casa, se já conheciam a zona, por que é que tinham decidido ir para ali, que era realmente muito agradável e o Tomás lá ia respondendo que sim a isto e não àquilo, pouco entusiasmado.

Antes de eu dizer o que pensava o Ricardo já o tinha escrito no seu computador mas, em vez de o dizer alto, deu-mo a ler:

- Casa? O mistério do Mário também tem a ver com esta casa?

Encolhemos os ombros e, embora achasse aquela coincidência estranha, pensei que nós também podíamos estar a criar ligações que não existiam. De qualquer forma era uma pista a seguir.

O Jeremias e o Gaudi cruzaram outra vez o nosso caminho e foram para dentro de casa. Talvez tivessem reparado nas enormes nuvens negras que escondiam as estrelas e que nos apanharam de surpresa quando começaram a pingar. Talvez se tenham chegado a divertir ao ver-nos correr de um lado para o outro com grelhador numa mão, salsicha na outra, sobremesa para cá e sangria para lá. Foi uma verdadeira aventura socorrer todos as comidas, bebidas e outros apetrechos da grande molha que nos acabou por apanhar a todos.

Com tudo a salvo, a Vera estava prestes a ficar triste por a chuva ter decidido cair exactamente em cima da sua festa quando o Henrique e a minha mãe começaram numa grande brincadeira à chuva.

- Molha por molha - dizia o Henrique - mais vale divertirmo-nos – e puxou a minha mãe para uma dança, em volta das cadeiras molhadas. O meu pai juntou-se a eles a cantar serenatas à chuva e eu, que já estava mais habituada àquelas manifestações familiares, chamei o Ricardo, para uma dança à boa maneira dos índios.

Divertimo-nos à brava, principalmente quando a Vera, que nos seguia da janela da sala, se começou a rir com umas gargalhadas tão altas e tão divertidas, que o Mário e o Tomás acabaram por ser contagiados. Que belo espectáculo devemos ter montado ali, eles dentro da casa a rir e nós cá fora aos saltos. Parecíamos todos malucos.

Estávamos definitivamente a viver o melhor momento da noite quando parou um carro junto ao portão. O Gaudi começou logo a ladrar e pelo tom, percebi que não estava a tentar fazer coro connosco. O Gaudi estava a ladrar ao Simão que se aproximava sorridente.

A Vera e o Tomás foram os primeiros a alterar a expressão. Pararam imediatamente de rir e olharam um para o outro, sem saber como reagir àquela visita.

Enquanto o Simão atravessava o portão, os meus pais entraram em casa, ainda a rir, para se secarem. Ficámos só eu, o Ricardo e o Henrique à chuva, entre o portão e o edifício da casa.
- Parece que vim em boa hora – Disse na nossa direcção, enquanto se abrigava da água no alpendre da entrada.
- Estamos a dedicar esta festa à chuva – brincou o Henrique– quer juntar-se a nós?

Pela janela consegui ver a Vera a acalmar o Tomás, que parecia esforçar-se por conter a sua fúria. O Mário apareceu a espreitar à porta da entrada.

- Com muito prazer! Estava nos arredores quando ouvi risos e fiquei curioso para ver o que se passava. A Vera e o Tomás estão?
- Estão cá dentro – respondeu o Mário – quem devo apresentar?
- O Simão. Sou um velho amigo.
- Muito prazer, eu sou o Mário –cumprimentou interessado.
- Ricardo e Carlota! É melhor virem secar-se antes que se constipem – apareceu a Vera a chamar-nos – Muito boa noite Simão. Como pode ver esta noite temos convidados cá em casa pelo que não o poderemos receber.
- Mas não se incomodem por nós – interrompeu o Mário.
- Eu não quero incomodar mas, fui surpreendido pela chuva e já sabem como são estas estradas à noite, não se vê nada. Então com mau tempo…
- Ah, percebo perfeitamente – concordou o Mário
- Por isso pensei fazer-vos uma visitinha até a chuva parar… - e foi entrando pela casa sem ser convidado. Nós seguimo-lo.

O Tomás emitiu um som tão irreconhecível que até os meus pais, que vinham da casa de banho com duas toalhas na mão, pararam para ver se tinha saído mesmo dele. Sem palavras, o Tomás refugiou-se na casa de banho e a Vera acompanhou-nos, a mim e ao Ricardo ao quarto dele para nos distribuir roupa seca para vestirmos. Já mais quentinhos regressámos à sala onde o Simão entretinha alegremente os meus pais e amigos.

- Isto é que ficou aqui uma bela obra, não é verdade? Foi a Vera que desenhou, a melhor arquitecta com quem já trabalhei!! – A Vera sentou-se sem demonstrar grande entusiasmo com os elogios. Como todos concordaram, o Simão continuou – realmente fiquei com pena de não acompanhar a obra até ao final… Como já lhe disse – dirigiu-se à Vera – tenho mesmo curiosidade em ver os desenhos que fez da casa, uma verdadeira obra de arte.
- Como já tive oportunidade de lhe dizer, as plantas não estão connosco, estão bem guardadas em local próprio. – respondeu contrariada.
- Mas o Simão também é arquitecto? – questionou o Mário.
- Não, sou construtor civil. Tenho construído muita casa por estas bandas mas com as particularidades desta, ainda não encontrei nenhuma. - Eu e o Ricardo seguíamos atentos o desenvolvimento da conversa.

- Assim em linguagem de quem não entende nada dessas coisas – tentou perceber a minha mãe – que tipo de particularidades é que há aqui?
- Essencialmente tem a ver com o terreno sobre o qual está construída Posso mesmo dizer que nunca tinha encontrado um terreno com a riqueza deste! - Olhei para o Ricardo que estava a olhar para mim com os olhos muito abertos. Acenei com a cabeça a confirmar que tínhamos ouvido o que tínhamos ouvido. A Vera semi-cerrou os olhos na direcção do Simão.
- Mas este terreno é diferente de outros terrenos no mesmo monte? – foi a vez do meu pai entrar na conversa.
- Daqueles onde eu já tive oportunidade de construir, é!
- E tem mais vivendas em construção, neste momento? – voltou o Mário
- Ainda não, mas estou a tentar comprar mais uns terrenos por aqui…

- A chuva parou – anunciou a voz grave do Tomás que atravessava a sala para abrir a porta da rua. – Foi um prazer mas pode voltar à sua viagem.

- Bem, parece que as visitas se querem ir deitar – disse o Simão, brincando com uma conhecida “indirecta de fim de festa”. Despediu-se e encaminhou-se para a saída. O Mário fez questão de o acompanhar ao portão e a Vera explicou:
- Peço desculpa por esta situação desagradável mas o Simão é uma pessoa inconveniente.
- Não houve problema nenhum, até me pareceu bastante simpático – consolou o Henrique.
- Este senhor é uma pessoa com quem não tivemos as melhores relações profissionais e por isso gostaríamos que nos deixasse em paz – elucidou o Tomás no seu tom de quem não estava a brincar – Não queria que ficassem ofendidos mas, para mim, esta noite está terminada. Terei muito prazer em que regressem noutro dia – convidou-nos o Tomás a sair.

- Não se preocupe – atencioso, o meu pai levantou-se logo – nós percebemos perfeitamente …
- Também já está a ficar tarde – ajudou a minha mãe.
- Peço mesmo desculpa – ainda acrescentou a Vera enquanto se despedia de nós à entrada.
- Vai ter comigo de manhãzinha – segredei ao Ricardo.

No caminho de regresso descobri que não era a única curiosa da casa. A estranha relação entre o Simão, a Vera e o Tomás foi assunto de especulação até irmos todos dormir.
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