passarola quer voar: Morte a seco na lavandaria 2

terça-feira, setembro 8

Morte a seco na lavandaria 2

Assim que entrei na lavandaria, com um saco de roupa suja na mão, senti-me sufocado pelo espaço claustrofóbico. Um buraco escuro e apertado, sem janelas e a tresandar a tira nódoas. Para onde quer que olhasse só via fatos e vestidos pendurados em cabides e protegidos por plásticos. Arrepiei-me com a imagem de um grande caixão colectivo de corpos feitos de tecidos mortos e fiquei tão impressionado que me pareceu ver qualquer coisa a mexer dentro de um dos plásticos. Inspirei fundo e, com o ar nos pulmões, aproximei-me para ver um vestido tão antigo que era difícil imaginar que alguém ainda o usasse nos dias de hoje. Era só um vestido e, onde tinha visto um conjunto de vermes a subir por tecidos podres, não era mais que uma etiqueta amarelada com o tempo e cheia de borrões de tinta. Podia voltar a respirar sem medo…
Reparei que a conta estava feita numa moeda antiga nesse e em muitos outros fatos. Conclui que aquilo só podiam ser peças de roupa não reclamadas do século passado e que eu estava a alucinar com o ar tóxico do tira nódoas. Mas havia ali qualquer coisa que me deixou nervoso e estava a virar-me para abandonar a lavandaria quando a vi pela primeira vez. Senti o sangue a congelar-me as veias dos pés à cabeça. De onde é que ela tinha saído e porque é que olhava para mim assim, sem um sorriso, sem uma palavra? A sua figura esguia, inexpressiva, vestida de negro provocava-me arrepios e preparava-me para abrir a boca e dizer que tinha sido engano e que já estava de saída quando senti a sua mão fria a tirar-me o saco de roupa suja da mão.

Não consegui pronunciar uma única palavra.

Abriu o saco e analisou cuidadosamente as peças de roupa que eu ali tinha enfiado. Sem hesitar, separou o meu fato favorito e uma das minhas melhores camisas. Voltou a pôr as restantes peças dentro do saco e devolveu-mo. Aproximou-se de um pequeno balcão de pedra cinzenta onde tinha um livro de recibos e uma pena. Só a vi fazer um movimento com a pena sobre o livro, antes de regressar para junto de mim com dois papeis na mão. Entregou-me um duplicado e prendeu o original à manga do casaco que juntou às calças e camisa numa cruzeta. Olhou para mim e estendeu a mão magra aberta na minha direcção. Não me lembro se lhe perguntei o que queria ou se automaticamente percebi que me estava a pedir os €15,30 marcados a tinta na etiqueta. Sem vontade de resgatar as minhas peças de roupa favoritas paguei-lhe com uma nota de 20 e corri dali para fora. Desorientado, andei, andei, andei, às voltas no meu bairro confuso com o que tinha acabado de me acontecer. Tentei brincar com a situação, «Assim percebe-se porque é que ninguém lá volta para levantar os fatos… que belo negócio o desta mulher…» e voltei para casa. Para não dar mais importância ao caso, atirei o recibo para um canto. Só voltei a olhar para ele com atenção, depois dos pesadelos começarem…

a ser continuada

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