passarola quer voar: 5. Uma visita arriscada

sexta-feira, janeiro 25

5. Uma visita arriscada

e sai mais um...

Assim que o Jipe desapareceu na paisagem o Jeremias arrancou de novo em direcção à casa e eu lá fui, atrás dele como se ambos soubéssemos que havia algo de muito suspeito para descobrir ali.

Perdi-o de vista e voltei a vê-lo junto à janela a que o Ricardo tinha trepado naquela manhã. Estava a indicar-me o melhor caminho para entrar. A cadeira de praia ainda se encontrava junto à janela aberta e eu tinha subido para cima dela quando, de dentro de casa, espreitou o focinho do Gaudi.

- Olá! Já me tinha esquecido de ti. Estás a convidar-me para entrar? Não seja por isso, muito obrigada pelo convite – brinquei eu enquanto entrava, com um salto, no quarto da Vera e do Tomás.

Olhei em volta e vi uma grande cama ainda desfeita, alguns livros na mesa de cabeceira e algumas peças de roupa espalhadas por cima da cama.
- Sabes o que isto me diz, Gaudi? Que, ou os teus donos são muito desarrumados, ou saíram à pressa, sem pensar em arrumações – e continuei a analisar o quarto.

Num canto estava uma grande cadeira com uma toalha de banho por cima. Era a cadeira onde a Vera se tinha sentado depois do telefonema. Afastei a toalha e encontrei um pequeno pedaço de papel com um número de telefone escrito.

– Cá está a pista nº 1 – expliquei ao cão e ao lagarto que me olhavam, um do chão e outro do alto da parede. Comecei a copiar aquele número para um pequeno caderno que tinha levado comigo e estava já a terminar quando reparei no Jeremias, muito irrequieto, a andar de um lado para o outro.
- Não precisas assustar-te, o Gaudi já não te faz mal – disse-lhe enquanto voltava a colocar o papel no seu lugar mas nesse momento, o cão disparou em direcção à porta da casa muito agitado. Era o Jipe que acabava de estacionar. O meu coração começou a bater mais depressa e as minhas mãos começaram a tremer. Percebi o que o meu lagarto me tentava dizer.

- Vão apanhar-me – pensei. A porta abriu-se e alguém começou a andar em direcção ao quarto.
- Agora não, Gaudi – era a voz da Vera e vinha mesmo na minha direcção. Num impulso saltei para debaixo da cama e fechei os olhos, ingenuamente, para ela não me ver. Senti os pés a aproximarem-se e a pararem mesmo atrás da minha cabeça. Achei impossível que não se ouvisse o bater do meu coração…
A Vera mexeu, remexeu e continuou a mexer. A cada movimento eu sentia as suas mãos mais próximas do meu corpo escondido. No próximo segundo seriam o meu pé ou a minha mão a serem descobertos e elevados no ar. Novos passos vinham na direcção do quarto.
- Encontraste? - Perguntou o Tomás, demasiado perto.
- Não tenho hipóteses! - senti.
- Está aqui! – A voz da Vera.
- Quem, eu?!?!? Pensei horrorizada – é o Jeremias – preparei a resposta na minha cabeça já com a face a ferver de vergonha. Esperei que a sua mão me tocasse, como que a confirmar a sua descoberta e continuei a esperar, enquanto fechava os olhos ainda com mais força. Não senti nada. Não ouvi nada. Nada! No meio de toda aquela aflição, nem percebi que ela tinha entrado, encontrado o que procurava e saído tão rapidamente como tinha chegado. O ruído do carro deu-me o sinal de que estava tudo bem. O cão voltou para junto a mim, carinhoso e brincalhão.
- Obrigada amigo! – não sei porque não me denunciou mas fiquei-lhe eternamente agradecida… Olhei em volta e vi a toalha de banho no chão. O papel com o número de telefone que a Vera tinha escrito mais cedo nessa manhã, tinha desaparecido. Era uma prova de que era importante. Eu estava no bom caminho.

Dei mais uma volta rápida pela casa e saí por onde tinha entrado. O Gaudi veio despedir-se de mim à janela e o Jeremias já tinha desaparecido quando o procurei.

No caminho para casa tentei organizar na minha cabeça tudo o que tinha descoberto. Pensei no número de telefone e decidi que, assim que pudesse, ligaria para saber a quem pertencia.

Quando cheguei a casa, encontrei o meu pai a preparar o almoço e a minha mãe a pintar numa grande tenda branca que tinham montado no jardim. Explicaram-me que aquela passaria a ser a nossa tenda refrescante, para descansarmos do sol durante as horas mais quentes do dia. Assim, depois de almoçar inaugurámos o nosso novo espaço de verão: A minha mãe a pintar, o meu pai a ler e eu, contrariada, a dormir a sesta.

Mais tarde a minha mãe perguntou-me se não queria ir convidar o Ricardo para vir brincar na piscina connosco o que me pareceu uma excelente ideia. Pus-me a caminho e nada me fazia prever o que iria encontrar. Em volta da casa dos novos vizinhos estava um grande rebuliço. Ao longe conseguia ver que estavam dois homens a conversar com o Tomás e mais dois ou três espalhados em volta da casa. Ao aproximar-me, percebi que estavam fardados e não avancei mais quando vi que eram da polícia.

Fiquei por uns momentos a pensar, sem saber o que fazer. Voltava para trás? Tentava perceber o que se estava a passar? Não, eu tinha de ir lá. A presença da polícia tinha definitivamente a ver com a minha investigação e era necessário descobrir porquê.

Vi o Ricardo e corri para ele que veio também ao meu encontro.
- Olá Carlota – escreveu – agora não te posso dar atenção. Parece que andou alguém a vasculhar a nossa casa e a polícia veio ver o que se passava. Tenho de voltar depressa.

Acho que já não ouvi o final da frase. Dentro do meu corpo começou uma agitação que me deixou mais muda que o meu amigo. Procurei no meu cérebro o programa da voz electrónica e não encontrei. Ele já regressava, atrapalhado, e eu, sem dizer nada, desatei a correr para só parar quando chegasse a casa.

Tinha medo até de pensar. Sim, porque eu sabia o que o meu cérebro me diria: Foste tu!! Vai lá e confessa. Entrega-te. Tentei distrair-me o resto da noite mas não enganei ninguém. Desculpei-me com o cansaço e fui-me deitar. Quando finalmente consegui adormecer, ainda foi pior.

Sonhei com muitos olhos grandes e assustadores que me fixavam. Por trás dos olhos não estavam caras, mas mãos fechadas com o indicador apontado na minha direcção. Surgiam de onde quer que eu me virasse e perseguiam-me para onde quer que eu fosse. Cercavam-me cada vez mais, fechando-me num círculo de dedos acusadores. Iam-se aproximando, aproximando até que só ficavam olhos. Olhos que eu começava lentamente a reconhecer. Eram os olhos da Vera que me acusavam de ter entrado no seu quarto, eram os olhos do Tomás que me acusavam de ter pisado a sua cadeira, eram os olhos do Ricardo que me acusavam de traição.
De repente, as cabeças da Vera, do Tomás e do Ricardo começavam a fundir-se numa só, onde crescia um focinho de pastor alemão que me perguntava: Achavas que eu não lhes dizia? Julgavas porventura que eu não sabia falar? Ora estavas muito enganada que eles já sabem de tudo… e começava a rir-se com um riso de quem tinha engolido um balão cheio de hélio.

Acordei a meio da noite cansada. Sabia que não me conseguia enganar a mim própria. Tinha de lá voltar, de perceber o que tinha feito de tão errado para que chamassem a polícia. Não podia ser por minha causa. Tinha de existir mais qualquer coisa. Decidi que o faria logo pela manhã e depois, tomada esta decisão, consegui dormir sem sobressaltos, todo o resto da noite.
...

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