passarola quer voar: 11. A procissão dos lagartos

sexta-feira, março 7

11. A procissão dos lagartos

Ai que este capítulo quase não saía no dia certo... mas aqui vai e posso garantir-vos que as coisas vão começar a aquecer ;) ah... e vem com arroz de marisco :P

Depois de mais uma noite de sonhos confusos com cabines telefónicas que abrigam personagens sinistras de furiosas tempestades de chuva, acordei para encontrar o Ricardo, que estava à minha espera à beira da piscina.

Embora o tempo ainda estivesse meio enevoado, decidi dar um mergulho para me ajudar a acordar. O Ricardo pousou o computador numa cadeira e saltou para dentro de água comigo. Acho que no fundo ambos sabíamos que tínhamos chegado às mesmas conclusões. Nem era preciso falar de nada. O mistério da casa aprofundava-se. Existia definitivamente um tesouro, o Simão sabia-o e o Mário tentava sabê-lo. Enquanto pensávamos nisto tudo, brincámos como dois bons amigos na água. E eu que não tinha gostado do Ricardo quando o conheci…

Já cá fora, enquanto partilhávamos as nossas ideias, lembrei-me das duas conversas que envolviam o Mário. A primeira entre a minha mãe e o Henrique, quando ficara a saber que o Mário precisava de dinheiro e, a segunda, entre o próprio e o meu pai, quando ele se mostrara pela primeira vez muito curioso com a casa vizinha.
- Mas será que ele sabe do tesouro? – perguntou o Ricardo.
- Isso é o que temos que descobrir agora…
- Já adivinhaste quem é que vamos encontrar na Residencial 3 estrelas?
- Não! O Simão?
- Nem mais!! O que é que o ladrão procurava?
- As plantas … que o Simão manifestou tanto interesse em ver. Faz sentido!!!
- Temos que tentar voltar a ligar para a Residencial e perguntar directamente pelo nome dele. Vais ver como passam a chamada a um dos hóspedes.
- E depois o que é que dizemos?
- Quando ele atender, desligamos. Só mesmo para termos a certeza.
- Vou ver se hoje convenço alguém a ir passear à vila.

A minha mãe entretanto, já acordada, veio cumprimentar-nos.
- Bom dia! Vocês não sentem frio?
- Não, está fixe! – A voz electrónica do Ricardo foi mais rápida na resposta do que a minha.

Nós continuámos por ali enquanto a minha mãe seguiu na direcção da tenda branca.
- Carlota! Chega aqui imediatamente – gritou a minha mãe num tom de voz que só usava quando estava mesmo zangada. Fomos a correr, eu à frente e o Ricardo um bocadinho atrás. A minha mãe estava à nossa espera à entrada da tenda.
- Que foi, mãe?
- O que foi? O que foi, é que com a tua brincadeira, apanhei um susto tão grande que ainda não me consegui acalmar.
- Mas eu não fiz nada… - lamentei-me enquanto procurava na minha cabeça algum indício do meu acto criminoso.
- Então vê o espectáculo macabro que está aí dentro..Vou chamar o teu pai.
- Macabro?? – E entrei devagarinho, com o Ricardo bem pertinho de mim.

À primeira vista, não vi logo o que é que tinha impressionado tanto a minha mãe. Era a nossa grande tenda branca, com a aparelhagem a um canto, muitos livros no chão e o quadro que estava a pintar, destapado no outro canto.

O Ricardo foi o primeiro a entrar. Deu um passo, e outro, e parou para observar melhor. Virou-se para me apressar e começou a apontar para uma grande nódoa verde que cobria o lençol amarelo onde eu tinha dormido as minhas sestas.

A nódoa movimentava-se, alastrando a cada momento. Parecia vir do chão de uma das extremidades da tenda e aumentava em direcção ao quadro da minha mãe que se encontrava no extremo oposto. Ao aproximarmo-nos, confirmámos que aí o verde ainda era mais forte, rodeando toda a zona da tela, como um velho anfiteatro orientado para a pintura.

Quando percebi o que era nem queria acreditar. Baixei-me para tocar num dos bichinhos verdes como se precisasse de mexer para confirmar que era real, que não era um desenho ou um brinquedo.

- Mas eu não sei o que se passa…- balbuciei. Nisto, o meu lagartinho passou por entre os meus pés. – Jeremias! Tu fazes ideia do que se está aqui a passar? – Ele olhou para mim, avançou e desapareceu no meio das centenas de lagartos que caminhavam em direcção ao quadro.

Vinham em fila, silenciosos, organizados numa verdadeira procissão de répteis. Aproximavam-se do quadro, preenchiam o primeiro lugar deixado vago por outro lagarto no grande semi-círculo verde e ficavam durante uns segundos a observar a imagem. Depois, ordeiramente regressavam pelo mesmo caminho já percorrido.

Olhei para o Ricardo que estava boquiaberto. A sua cabeça girava em todas as direcções tentando absorver tudo o que via. Sem saber o que dizer, procurei a minha mãe.
- Palavra que não fui eu que os trouxe para aqui….
À entrada estavam agora o meu pai, o Mário e o Henrique. Todos tão surpreendidos com aquela imagem como nós.

– A tua mãe foi buscar a máquina fotográfica, senão ninguém acredita…- Palavras mágicas ou não, no momento em que o meu pai falou, todos os lagartos fugiram num movimento sincronizado.

- Hei!! Onde é que vão?? O que é que estavam aqui a fazer??? – gritei inutilmente. Quando a minha mãe chegou de câmara em punho, já todos tinham desaparecido sem deixar rasto.

- Que diabo se passou aqui? - Perguntou a minha mãe enquanto protegia a tela com um lençol.

- Fácil – começou a explicar o Henrique – toda a comunidade de lagartos se rendeu ao teu talento e veio para admirar uma grande obra de arte!
- Sem brincadeiras. Isto foi o momento mais estranho que eu já vivi…Quando entrei na tenda só vi os lagartos, não percebi o que estavam a fazer.. Brrrr!! Ainda fico arrepiada só de pensar.

Tínhamo-nos sentado todos na cozinha a falar ao mesmo tempo, enquanto a minha mãe preparava uma infusão de ervas.

- És a única artista que eu conheço que tem um clube de fãs no meio animal..- brincou o meu pai – é por isso que eu gosto tanto de ti – e deu-lhe um beijo, carinhoso.
- Se calhar tivemos todos uma alucinação colectiva – tentou justificar o Mário – Há um incêndio grande perto daqui, imaginem que respirámos todos alguma coisa que não devíamos..
- Essa justificação ainda é mais alucinada que a do Jorge – respondeu o Henrique.
- Quantos lagartos seriam? – Questionava a minha mãe.
- Umas centenas deles – avançou a voz electrónica do Ricardo.
- Nem eu tinha visto tanto lagarto junto em toda a minha vida – disse eu.
- Que pena que não tenhas conseguido fotografar – Lamentou-se o Henrique
- Essa ganhava um lugar entre as melhores fotografias do mundo. – Confirmou o meu pai
- Pelo menos era certamente a mais insólita - Acrescentou o Mário.

Estivemos tanto tempo a tentar explicar o inexplicável, que nem demos pela hora do almoço a aproximar-se. O Ricardo foi chamado para regressar a casa, pelo telemóvel da minha mãe. A Vera já estava a ficar preocupada porque começava a ficar tarde e o filho não havia maneira de chegar. Com a certeza de que levava uma justificação bem original para o atraso, ele lá foi a correr pelo caminho.

Durante o almoço lembrei-me da investigação que tinha em curso e tentei um truque que, posso dizer, me saiu muito bem. Logo depois de elogiar a bela refeição preparada pelos meus pais, perguntei o nome de um restaurante que havia na vila onde faziam um arroz de marisco quase tão bom como aquele. Eles lembraram-se logo, não só do nome do restaurante como de que já não iam lá há muito tempo..

- É verdade. Está decidido, vamos lá hoje à noite comemorar a consagração da nossa artista – convidou o meu pai.
Bingo!! – pensei eu, era mesmo aí que eu queria chegar. – E o Ricardo pode vir connosco? – ainda abusei da minha sorte mas, não sei porquê, começaram todos a gozar comigo.
- Vocês também repararam que a Carlota e o Ricardo andam sempre muito juntinhos – começou o Henrique.
- É verdade, muita piscina, passeios, brincadeiras.. não sei se posso autorizar isso – ajudou o meu pai.
- Qual é o mal? – indignei-me.
- Vá lá, não sejam parvos – a minha mãe veio em meu socorro – É claro que sim. Tens é que perguntar aos pais dele se também estão de acordo.

Mais tarde descobri que não estavam. Pelo menos o pai que já pensava que a minha família não tinha um comportamento muito normal. Primeiro tinham sido as viagens inter-galácticas, depois as danças à chuva e, para rematar, uma procissão de lagartos. Desconfiou que, onde quer que nós estivéssemos, iríamos fazer coisas estranhas e, pelo sim, pelo não, preferia não ver o filho metido nisso.

- Que azar!! E a tua mãe não nos pode ajudar? – ainda tentei.
- Não vale a pena. Ela diz que o melhor é deixar que lhe passe. Amanhã já não se lembra. Vais ter que ligar sozinha.
- Mas ele vai reconhecer a minha voz..
- Põe um lenço a tapar o microfone, como fazem nos filmes.
- Posso tentar, mas não vai ser a mesma coisa – disse desanimada.
- E falas só com o da recepção. Quando ele te passar, confirmas que a voz é a do Simão e desligas sem dizer nada, ok?
- Ok – disse enquanto pensava que não era nada OK, que o Ricardo devia ir comigo. Já me estava a afastar quando ele ainda me chamou.
- Carlota! Não contes nada aos teus pais do que o meu pai disse. Sabes como é que são os adultos, ficam chateados com estas coisas e não vale a pena..

Confirmei e regressei a casa, muito apreensiva e nervosa com a minha tarefa.
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