passarola quer voar: 12. Um homem sem rosto

sexta-feira, março 14

12. Um homem sem rosto

este capítulo é dos bons... cheio de mistério... uuuuu.... deste eu ainda gosto ;)

Já não me lembrava que o restaurante ficava numa zona da vila tão diferente da zona do jardim onde tínhamos encontrado a cabine telefónica. Enquanto a comida vinha e não vinha, pensava se, sozinha, seria capaz de lá voltar, telefonar e regressar ao meu lugar sem que ninguém estranhasse a minha falta. Num momento em que estavam todos entretidos nas suas conversas de adultos, aproveitei para abrir a boca do meu sapo e confirmar que tinha lá tudo o que precisava:
O caderno com o número de telefone, o cartão com dinheiro para as chamadas e um lenço para abafar a voz. Está tudo pronto para a acção. – pensei, satisfeita comigo mesma.

Abdiquei da sobremesa e pedi autorização para ir brincar para a rua. Peguei na minha mochila e fui em busca do jardim – Se ao menos tivesse o computador do Ricardo para ver no mapa onde fica – pensei. Dei umas voltas e nada. Estava indecisa sobre se voltava para o restaurante ou se me aventurava por caminhos desconhecidos quando vi que vinha uma sombra a andar na minha direcção. Tentei ver quem era para perguntar o melhor caminho para o jardim mas, à medida que se aproximava, comecei a sentir que existia algo de estranho naquela personagem.

Ao contrário do que seria normal, quanto mais perto estava, mas confusas pareciam as suas formas. Vinha mesmo a andar até mim e comecei a ficar assustada. Rapidamente perdi toda a vontade de perguntar o que fosse a quem quer que se aproximasse. Só queria ficar invisível mas isso não aconteceu e o vulto alto, escuro e sinistro chegou mesmo ao pé de mim. Uma voz grave quebrou o silêncio da rua:
- Olha se não é a miúda dos lagartos… – disse provocando-me um calafrio que me atravessou o corpo dos pés à cabeça.
- E o Senhor quem é? – ainda perguntei, enquanto procurava distinguir por debaixo de um chapéu escuro uma expressão que pudesse ligar a qualquer um dos acontecimentos dessas férias, mas sem sucesso. Só uma enorme sombra sem rosto.

A silhueta negra já se afastava de mim a passos largos deixando-me, mais do que intrigada, verdadeiramente apavorada. O homem sem rosto sabia quem eu era sem que eu nunca o tivesse visto. Imóvel, vi-o desaparecer no fundo da rua e comecei a andar apressada na direcção oposta. Queria tanto afastar-me dele que nem pensei que também me afastava do restaurante sem saber para onde ia. Encontrei-me perdida no meio de um largo da vila. Exactamente no meio reconheci uma forma rectangular. Já me preparava para continuar a andar quando o meu cérebro finalmente despertou – Oh que estúpida!! É uma cabine telefónica. – Olhei em redor para confirmar que não estava acompanhada de mais nenhuma criatura estranha e corri para o seu interior. Quando lá cheguei, tacteei o aparelho em busca do pequeno orifício onde deveria colocar o cartão e não o encontrei. Coloquei-me em bicos dos pés e descobri que esta ainda era das cabines antigas, que funcionavam com moedas. – Está sempre tudo ao contrário! – pensava enquanto procurava com as mãos a minha pequena bolsa dentro da mochila. Encontrei-a e retirei de lá de dentro 2 moedas. Coloquei-as no respectivo local, levantei o auscultador e ouvi o sinal de linha. Tapei o microfone com o lenço e marquei o número quase de cor. Do outro lado o aparelho tocou duas vezes.
- Residencial 3 Estrelas, boa noite.
Fiz uma voz o mais grossa que consegui. – Boa noite. É possível falar com o Sr. Simão, por favor?
- Sabe o número do quarto?
- Não.
- O apelido?
- Também não.
- Aguarde um momento, por favor, que eu vou confirmar no livro de registo se temos algum hóspede com esse nome.
- Muito obrigada.
Passados alguns segundos a voz do outro lado regressou. – Temos efectivamente um Senhor no quarto 116, chamado Simão Terroso, será quem procura?
- É sim, muito obrigada – mas eu ainda não tinha acabado de agradecer e o telefone ainda não tinha chegado a tocar quando numa outra extensão alguém me respondeu.
- Quem fala? – desliguei violentamente a chamada e sentei-me no chão a ouvir o meu coração bater.

Eu tinha ouvido a voz do Simão que tinha ouvido a minha voz. Poderia ele ter-me reconhecido da mesma forma que eu o reconheci a ele? Porque é que as conquistas nunca têm um sabor de sucesso nesta história, lançando mais dúvidas e medos sobre todo o mistério?

Acabei de confirmar que o nosso suspeito é o Simão. Foi ele que assaltou a casa e é ele que anda a assustar a Vera e o Tomás. Mas agora, como é que ele vai reagir a esta chamada e quem é aquela nova personagem que eu conheci? Pior do que tudo isto, que caminho é que eu fiz para chegar aqui e como é que vou regressar ao restaurante?

Estava eu a pensar que bom que seria se o Ricardo estivesse ali, quando vejo o Mário, distraído, a atravessar a rua à minha frente. Estava a falar ao telemóvel e eu aproveitei para segui-lo.

Foi a minha salvação. Por um lado, levou-me direitinho ao restaurante. Por outro, fui a ouvir a sua conversa que, embora breve, me deixou perceber que combinava um encontro para o dia seguinte, às 15 horas, no local do costume. Entrei mesmo atrás dele no restaurante e confirmei que ninguém tinha dado pela minha falta. Estavam todos preocupados com o Mário.

- Onde é que andaste? – Perguntou o Henrique.
- A conversa não me estava a agradar e fui dar uma volta.
- Nós estávamos a falar abertamente contigo porque gostamos de ti, não é por mal – disse-lhe a minha mãe, afectuosa. - E tu lagartinha, onde é que estavas metida?
- Estava aqui atrás a brincar – respondi simplesmente, ocultando todos os arrepiantes acontecimentos do meu passeio nocturno.

A conversa com o Mário continuou mas em nenhum momento ele falou do telefonema ou da combinação que fizera para o dia seguinte. Isso significava que fazia parte do seu segredo e nesse momento tive a certeza que, se conseguíssemos segui-lo, iríamos ter mais uma revelação sobre o nosso mistério. Tinha que avisar o Ricardo para estarmos preparados.

No regresso a casa, já iam todos muito bem dispostos e brincalhões como é habitual. Planeavam fazer uma cerimónia na tenda branca, com muito incenso e danças tribais para afastar lagartos maus. Ainda ninguém se tinha esquecido do bizarro acontecimento dessa manhã.

Eu desta vez não participei da festa, despedi-me e fui para o meu quarto onde encontrei o Jeremias. Pedi-lhe para levar uma nota ao Ricardo onde escrevi:

Confirma-se Simão na Residencial.
Amanhã investigar Mário logo a seguir ao almoço.
Vou ter contigo de manhã. Carlota

Ele saiu obediente e eu fui deitar-me. Claro está que nem é preciso dizer que nessa noite sonhei com silhuetas de homens sem rosto que me repetiam vezes sem conta: “Olha se não é a miúda dos lagartos!”
...

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