passarola quer voar: 14. A noite dos idiotas

sexta-feira, março 28

14. A noite dos idiotas

Este é um bocado para encher chouriços... mas pronto, já que está escrito, cá vai.

Nessa noite, para desanuviar o ambiente, o meu pai lembrou-se de inventar um jogo para o serão. Chamou-lhe o Jogo dos Idiotas e o objectivo era criar uma história colectiva. À excepção do Henrique que adorava inventar histórias, começámos todos a gozar com ele a dizer que isso era mesmo uma coisa muito idiota para se fazer numa noite tão estrelada como aquela.

Ele perguntou-nos com ar de mau se lhe estávamos a chamar idiota e recebeu um grande SIM, em coro. Como resposta à nossa provocação, fez uma expressão zangada, seguida de uma expressão apreensiva que finalizou com um sorriso.
- Então meus caros amigos, resta-me agradecer-vos o elogio e, já que me consideram pessoa capaz de muitas ideias, acredito que estão de acordo em experimentar o meu jogo.

Apesar dos nossos NÃOS sucessivos, começou a explicar as regras:
1. Cada jogador tem um máximo de 1 minuto para jogar;
2. Se um jogador utilizar duas palavras, o jogador seguinte terá que usar, no mínimo duas e no máximo três palavras;
3. Nenhum jogador pode repetir uma acção ou ideia utilizada pelo jogador imediatamente anterior;
4. Por cada transgressão o jogador recebe uma penalização;
5. À 5ª penalização o jogador é eliminado;
6. Ganha quem conseguir dar um final lógico à história.

- Que confusão!!! – começámos todos a queixar-nos, ao que o meu pai sugeriu que fizéssemos uma experiência. Foi buscar o cronómetro em forma de porco que tinha na cozinha e começou:
- Era uma vez… - passou a palavra ao Mário que estava sentado ao seu lado direito.
- O capuchinho vermelho.
– Buuu!!!! - Começámos todos a assobiar – essa história já existe!!! Que falta de imaginação!!!
- OK, OK, eu corrijo – desculpou-se – um monstro amarelo
- Ah!!! Assim está melhor – aplaudimos todos.
Eu estava sentada logo a seguir – Ai!! Er…com bolinhas coloridas – safei-me.
Era a vez do Henrique – que gostava muito de…
E a minha mãe especificou - … bolinhos de coco…
- Falta uma, já estamos em 4 palavras – esclareceu o meu pai. A minha mãe pensou um segundo, fez um sorriso e acrescentou – com…
Voltou ao meu pai – camadas de pó em cima, ponto final – terminou – E já estamos em 5 palavras.
Era a vez do Mário que pensou, pensou, pensou e deixou passar o tempo sem se lembrar de nada.
- Piiii!! – Gritou o meu pai a olhar para o relógio – Primeira penalização para o Mário e passa o jogo à Carlota.
- Ops! – engoli em seco, bati com as mãos nervosas na mesa e de repente lembrei-me – Numa linda manhã, ao acordar…
- Boa, Carlota! – gritaram em coro. Era a vez do Henrique.
- … aconteceu-lhe aquilo que não esperava…
- E agora? - lançou-se a dúvida – O lhe vale ou não vale como uma palavra?
- Não, arbitrou o meu pai. Vamos continuar… - E passou a palavra à minha mãe que, depois de pensar um segundo, acrescentou:
- … e que iria mudar a sua vida…
- Piii!!!! Duas palavras a mais dá penalização – gritámos, divertidos.
- Está a aquecer, já precisamos de sete palavras – comentou o meu pai, excitado. Era a sua vez – …aquilo que iria mudar os seus hábitos…
- Piiii!!! – Gritámos todos bem alto – Repetiste uma acção!! Primeira penalização para o Jorge!!!
Era novamente a vez do Mário – Sentiu-se enjoado depois de comer bolinhos de coco…
- Já!! – exclamei sem perceber como é que estava novamente na minha vez - …e depois de comer bolinhos de coco… - antes de eu me calar já estavam todos a gritar – Piiiiii!!! Repetição!! Repetição!!
- Não é justo!! Eu estava a pensar alto, ainda não estava a dizer….- Os meus argumentos não serviram de nada, ganhei a minha primeira penalização e passei a bola ao Henrique.
- …Sem saber se era do coco ou do pó..
A minha mãe continuou a ideia – … desistiu dos dois e fez bolinhos só com cócó!. Ponto final e fim de história. Ganhei!! Gritou satisfeita.
- Que fim tão estúpido!! – Ainda gritámos mas a verdade é que nos fartámos de divertir.

À medida que íamos jogando, as nossas histórias iam ficando mais compridas e mais idiotas. Numa das vezes em que fui, diga-se de passagem, injustamente eliminada, vi o meu lagartinho a passar no lado de fora da janela da sala. A minha mãe, o meu pai e o Henrique continuavam a história à desfiada, enquanto o Mário já os observava de fora, como eu. Percebi que não dariam pela minha falta e resolvi seguir o lagarto para ver onde me levava.

Já cá fora, olhei em volta e não o vi. Reparei que o Mário me espiava pela janela. Fiz questão que me visse a olhar para ele mas o seu olhar não se moveu. Parecia hipnotizado a fixar o infinito. Talvez não estivesse a olhar para mim, continuei o caminho e vi o Jeremias um pouco mais à frente, ao pé do portão de saída do terreno. Lembrei-me de que a minha lanterna estava na pequena mochila sapo que ficara dentro de casa e tive receio de o seguir às escuras.
- Se esperares por mim vou buscar a minha lanterna – disse-lhe. Mas o bicho olhou para mim e avançou um bocadinho, sem fazer tenções de esperar.
- É mais uma pista urgente? – perguntei-lhe enquanto a medo o seguia devagarinho. Não precisei de avançar muito para perceber o que me mostrava. Comecei a sentir o caminho mais iluminado e vi que a luz vinha dos faróis de um carro que avançava lentamente, silencioso, no sentido da casa do Ricardo. Protegida pelo escuro da noite, consegui ver que era o carro que tinha levado o Mário nessa tarde.
- Quem será este e o que quererá ele de nós? – Ainda consegui ler dois números da matrícula que fui a repetir até casa – 89, 89, 89, 89…

Dentro do portão o Jeremias desapareceu novamente por baixo da lona branca da nossa tenda refrescante.

- Onde é que estás, Jeremias? – perguntei já lá dentro. Senti-o a mexer e tentei seguir o som desse movimento. Às apalpadelas atravessei a tenda até chegar a uma superfície de madeira. Desastrada, tropecei em alguma coisa no chão, perdi o equilíbrio e tentei recuperá-lo agarrando-me a um objecto que, com o meu peso, cedeu e caiu ao chão com um ruído tal que vieram todos de dentro de casa ver o que se passava.

- O que é que estás aqui a fazer? – Perguntou-me a minha mãe enquanto o meu pai abria bem a entrada da tenda para deixar espreitar a luz.
- Não sei bem… – disse sem mentir.
- O meu quadro!! – Gritou a minha mãe enquanto avançava na minha direcção – Deixaste cair o meu quadro!
Já vinham todos em socorro da tela desmaiada no chão.
– Desculpa mãe, não vi. – Assustada, baixei-me para analisar as consequências do meu acidente. Assim que o levantaram e exibiram à luz da noite, o quadro pareceu recuperar todas as suas cores sem sintomas de ferimentos, graves ou leves.
- Tiveste sorte do quadro estar bem – ralhou-me a minha mãe – senão, nem sei o que te fazia…
Estávamos todos a olhar surpreendidos para a pintura.
- Bem, já tens o quadro quase pronto, não? – perguntou o meu pai
- Achas? – A minha mãe analisava a sua obra com um olhar critico.
- Está fantástico! Surpreendente! – Elogiou o Henrique com sinceridade.
- Valiosíssimo!! – Contabilizou o Mário.

O trabalho da minha mãe apresentava uns tons e umas formas estranhíssimas. Quando o olhávamos pela primeira vez víamos aquela paisagem que nos era tão familiar mas, em cada pormenor, parecia que a tela mudava de formas, bem debaixo dos nosso olhos só para nos confundir. Cada ponto assumia uma imagem diferente, uma forma diferente, uma tonalidade diferente. Viam-se histórias, viam-se objectos, viam-se paisagens. Em determinado momento até me pareceu ver o meu Jeremias rodeado de milhares de lagartos. Era como se, numa imagem só, conseguisse reunir tudo o que aquele local significava para mim, com todas as aventuras que ali tinha vivido.

- Agora percebo a veneração dos lagartos! – disse o Henrique, não sei se a sério se a brincar.
- Bem, eu ainda não estou satisfeita. Acho que falta qualquer coisa mas não é agora que a vou descobrir, sabem porquê?
- Não – Respondeu o Mário ainda sem tirar os olhos da tela.
- Porque o meu corpo está a mandar-me ir dormir.. – e bocejou para confirmar que estava com sono.
Dito isto, demos a noite por encerrada e fomos todos para a caminha.
...

Etiquetas: ,